Folha de S. Paulo
Espanto diante dos comportamentos exibidos a
olhos públicos decorre de quem tenta buscar racionalidade
"Para obter o seu objetivo, o diabo é capaz até de citar as Escrituras" (Shakespeare em "O Mercador de Veneza"). Um filme a que se pode assistir como paráfrase desse pensamento é "O Diabo de Cada Dia" (2020), de Antonio Campos, sobre uma corrente do mal perpetuada em pequena cidade de Ohio (EUA). Vê-se como a religião molda trajetórias de vida, desenhando personagens com linhas distorcidas, desvirtuando o que se entende por fé. A ignorância total da realidade é aprofundada pela interpretação enviesada da Bíblia a cargo de um duvidoso pastor.
Um vilarejo desses é uma espécie de quintal
de grande metrópole, assim como os sul-americanos foram chamados de
"quintal" da América pelo neofascismo instalado em Washington. O que transcorre
no filme é modelo da obtusidade dos protocolos populares da fé entre nós. Uma
infra-teologia, raspas do atraso americano, molda o espaço de onde parte a
crença para abraçar o destino humano em suas relações com o invisível. Mas o
espanto diante dos comportamentos bizarros exibidos a olhos públicos decorre de
quem tenta buscar um mínimo de racionalidade para o que acontece, quando as
causas se localizam no mundo equívoco criado pela imaginação mítica do rebanho.
Pouco tempo atrás, pareciam ligadas a um
clima alucinatório orações coletivas a pneus de caminhão, indivíduos em marcha
como autômatos descontrolados, multidões com celulares acima das cabeças em
aparente apelo por uma intervenção dos céus. Amenizado o clima, porém, o fenômeno
se reedita nas redes e em frente ao hospital do internamento de Bolsonaro. Numa postagem, dizia um fiel que, abaixo de Deus
na Terra, só o numinoso capitão.
Esses eventos fanáticos resultam da
exasperação de uma das subculturas oligofrênicas, plenas de analfabetos funcionais (68 milhões de brasileiros
acima de 18 anos, segundo o recente indicador de várias fundações, institutos,
Unesco e Unicef), que coabitam com o sistema público de costumes e crenças. É
síndrome de doença epidêmica da alma coletiva. O movimento antivacina, fortalecido durante a pandemia
da Covid, faz parte de uma latência dessa natureza não só entre nós, como
em outros países. Em 1966, numa epidemia
de poliomielite, um pastor holandês proibiu os paroquianos de vacinar seus
filhos, sob o pretexto de uma "punição de Deus". Numa antiga
concepção judaico-cristã, qualquer calamidade seria interpretada como castigo
de Deus a pecadores. Para espíritos mais obscuros, "coisa do diabo".
Daí ao salto no mundo da política é apenas
circunstância, quando profecias bíblicas se tornam políticas de Estado. Diabo,
outro nome para terror existencial, é matéria de neofascismo com Trump. Ao modo de Lúcifer, ele forjou uma
foto em trajes papais e tem oficiado ritos cristãos. Eventos desrespeitosos, principalmente agora com um novo papa. A amplitude dessa efervescência fake não tem
escala geográfica. Tanto faz país, metrópole, vilarejo, as quatro paredes de um
templo suburbano ou uma "church" (o inglês marca a diferença de uma
instalação de ricos), pastos para o pior do ser humano. Com ou sem inferno: não
à toa, já se disse que "o diabo é um otimista se acredita que pode piorar
as pessoas" (Karl Kraus).
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