O Globo
É preciso entender que conflito é da natureza
da democracia e, por isso, criticar e ser criticado faz parte do jogo
Agora é essa conversa da camisa da seleção.
Minhas redes sociais, cheias de amigos e conhecidos progressistas (dos lulistas
aos marinistas, dos saudosistas aos pós-modernos), todos ulularam de
satisfação: “Agora eu compro!”; “Vamos pra rua de camisa vermelha da seleção!”;
“Quero ver a cara dos patriotas!”.
Gente, que pobreza de ideias é essa? Sou do
tempo em que a gente comprava a camisa vermelha na barraquinha da Rua XV, com o
broche do Henfil mostrando a graúna indignando-se com alguma coisa. Na hora da
Copa, era a amarelinha ou a azul do manto de Nossa Senhora, a padroeira, porque
futebol é crença e também é sofrimento. Quem pautou essa bizarrice de
transformar a sagrada camisa do penta em símbolo de passeata política foram os
caras do “mito”. Uma tristeza, uma apropriação indébita, uma profanação cultural
com o símbolo máximo do nosso futebol, envergada com galhardia por Pelé,
Garrincha, Gérson, Rivelino, Tostão, Sócrates, Falcão, Júnior, Zico, ah, tantos
nomes gloriosos e inesquecíveis.
A esquerda fica empolgada com essa peraltice da CBF porque perdeu o rumo de sua própria narrativa e vive hoje como a cacatua de uma tia minha, que só sabe repetir as palavras que ela ensina. Muito malandra, minha tia ensina frases para desconcertar as visitas, como “Já não está tarde, comadre?” ou “Ai, que tá na hora da minha novela!”. Essa última, minha tia jura que ela repete, mas nunca ouvi. De qualquer forma, achei genial. Para uma cacatua, não para as forças progressistas do país.
Será que acabaram as pautas? Estaremos mesmo
com nossos problemas todos resolvidos e nos resta apenas ficar arengando com os
bolsonaristas, respondendo às provocações deles? E olha que isso eles fazem
muito bem. Estes dias, um vereador em Curitiba disse que a Ku Klux Klan era
contra as armas para os negros, por isso (eita raciocínio louco!) os negros
foram desempoderados. Tudo isso para defender uma homenagem aos CACs. E dá-lhe
indignação na internet, mostrando o rostão do vereador, feliz e contente com o
marketing indireto.
O Brasil é um país de democracia deficitária.
Está tudo para ser feito — começando na escola, que deveria ter aulas sobre a
Constituição como tem de matemática. Ninguém está satisfeito, porque nossa
democracia é nota 6. Sempre passa raspando. Por isso, quem realmente se importa
com ela deveria falar dela o tempo todo, ser didático, lembrar as conquistas
tão duramente alcançadas, como a saúde pública, a universidade pública, as
políticas de atendimento aos mais pobres. Mas também deveria falar do que falta,
do que precisa ser feito, de como é importante garantir cidadania e bem-estar
para todos, e não só para os 140 mil que quase não pagam imposto. E tem de
entender que conflito é da natureza da democracia, por isso criticar e ser
criticado faz parte do jogo e não dá para substituir um “mito” por outro,
porque até os gregos já largaram mão desse negócio de mito há mais de 2.500
anos, e a gente ainda fica nesse rame-rame.
O denuncismo sem proposta é, para dizer o
mínimo, chato pra caramba. E há muito tempo os progressistas andam sem
propostas visíveis. Sei que, nos cursos de pós-graduação, nos fóruns acadêmicos
e nas revistas especializadas, circula muita ideia boa. Mas aqui no rés do
chão, onde vivemos nós, simples mortais, na planície, é só baixaria, de todo
lado.
E agora tem mais essa história da camisa da
seleção. Que tristeza!
*Daniel Medeiros é doutor em educação histórica e professor de humanidades no Curso Positivo
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