Não há teoria que subverta a convicção de que as coisas humanas andem ora
tangidas por nossas ações, conscientes ou não dos resultados que delas advirão,
ora como que animadas por movimentos internos, como que autopoieticamente,
categoria que a sociologia, na obra clássica de Niklas Luhmann, importou da
biologia, hoje incorporada ao léxico da moderna teoria social. A mudança de
bastão de Lula da Silva para Dilma Rousseff, celebrada como uma prestidigitação
em que a segunda deveria representar, no exercício do poder, a continuidade
corporal do seu antecessor, como que em comunicação demiúrgica com ele - o
corpo metafísico do rei -, omitiu no seu ritual a transmissão do carisma para a
sucessora, como se ela estivesse fadada tão somente à missão litúrgica de zelar
pelo culto do fundador da sua dinastia.
O fato é que, sob o governo Dilma, o ímpeto da expansão do capitalismo no
País segue o seu curso, evidentes, a esta altura, os sinais de que esse
movimento não obedece apenas a uma simples lógica naturalística, mas que já se
constitui num processo politicamente orientado. Mais do que gestora, Dilma
investe-se do papel de primeira executiva em geral do capitalismo brasileiro,
concebido como um projeto nacional a ser implementado de modo decisionista pelo
Poder Executivo e sua sofisticada tecnocracia. Entre vários outros, mais um
indicador dessa inovação em termos de estilo de exercício de poder está na sua
diplomacia presidencial, centralmente orientada para a projeção da economia do
País no cenário internacional e refratária, sem alarde, a postulações
político-ideológicas. Se coube antes, não lhe cabe mais a imagem de uma simples
gerente da administração pública, porque já está aí o esboço de um perfil forte
de dama de ferro do capitalismo brasileiro.
De outra parte, a expansão da experiência capitalista no Brasil não é mais
apanágio do Centro-Sul, o agronegócio abriu-lhe o hinterland, introduzindo
mutações irreversíveis na sua composição demográfica e na sua estrutura social.
E por toda a imensa região da fronteira ela ativa e energiza a iniciativa dos
seus setores subalternos, cria e expande mercados.
Essa vigorosa difusão da vida mercantil, contudo, se afirma num cenário
desértico quanto à estruturação do político e à difusão de valores cívicos. Nas
ciclópicas obras da construção de usinas hidrelétricas, que ora têm lugar nessa
região de fronteira - empreendimento de grandes empreiteiras, financiado, em
boa parte, com recursos estatais -, são mobilizadas centenas de milhares de
trabalhadores, a maior parte deles conhecendo o seu primeiro emprego formal e a
sua primeira exposição às leis trabalhistas e à vida sindical, que agora começa
a chegar-lhes, em meio a greves selvagens e a atos tumultuados de protesto
contra as precárias condições de trabalho com que se defrontam.
Por cima, a emergência de novas elites que fizeram a sua história à margem
das lutas pela democratização do País. Por baixo, a presença multitudinária de
trabalhadores e de homens em busca de oportunidades de vida, um capitalismo de
faroeste que tem forçado, às vezes com sucesso, as portas de entrada da
política, como neste Goiás de Carlinhos Cachoeira - personagem tão expressivo
desse mundo quanto o foi, em Serra Pelada, o major Sebastião Curió -, espécie
refinada de um gângster de bons modos e de bom gosto que parece saído de um
romance de Scott Fitzgerald.
A natureza quasímoda do nosso sistema político - tradicional composição
heteróclita do moderno com o atraso, este, no caso, representado pelas
oligarquias tradicionais, filhas do nosso secular exclusivo agrário - torna-se
ainda mais aberrante com a incorporação, como se tem apurado nas investigações
em curso, dessa floração de um capitalismo sem lei, que, com métodos de máfia,
se infiltra em grandes empresas, nas estruturas do Estado e do Ministério
Público - lugar de origem da escalada política do senador Demóstenes Torres - e
também na sede do Poder que representa a soberania popular.
As coisas humanas andam, e o seu andamento sinaliza, para o governo Dilma, o
que talvez fosse ainda pouco visível para o seu antecessor: o presidencialismo
de coalizão, na forma como vem sendo praticado, converteu-se numa política de
alto risco para a democracia brasileira. O presidencialismo de coalizão,
decerto, tem-se mostrado, entre nós, como uma via institucional adequada a fim
de afiançar governabilidade, especialmente após a experiência frustrada do
governo Collor, que se pretendeu pôr acima dos partidos. Mas a reiteração
acrítica da sua prática, em particular no segundo mandato de Lula e na
articulação da composição ministerial do governo Dilma, cuja montagem original
não resistiu sequer a poucos meses de operação, não deixa mais dúvidas quanto à
necessidade da revisão do seu modo de operação. O affaire Demóstenes-Cachoeira,
com a CPI "do fim do mundo" ou sem ela, bem que pode ser a gota
d"água.
Nessa forma de presidencialismo, a coalizão deve-se dar em torno de
políticas, e não de interesses avulsos e fragmentados, como na nossa
experiência atual, a qual, ao ratear benefícios e prebendas a granel, com a
pretensão de garantir insulamento para a política decisionista e tecnocrática
do Executivo, franqueia as estruturas do Estado à apropriação por parte de
particularismos privatísticos, quando não do crime organizado por meio de redes
de estilo mafioso.
A História contemporânea é farta em exemplos no sentido de mostrar que, por
trás da projeção nacional dos Estados bem-sucedidos, há uma República, destino
para o qual nos tangem os fatos, já desavindos com essa democracia de
interesses que converteu a política num processo penal sem fim.
Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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