Há nessas gravuras algo que tanto lembra cartas de baralho quanto
símbolos heráldicos
A gravura é uma das mais significativas expressões das artes plásticas
brasileiras modernas.
É também hoje um dos pontos mais críticos desse campo de criação,
precisamente pelo que mais caracterizadamente a qualifica: seu caráter
eminentemente artesanal, ou seja, situa-se no polo oposto à arte conceitual
-tida como a mais avançada das tendências artísticas.
Para quem acredita nisso, a gravura será uma expressão obsoleta, fora de
época. Só que beleza não tem época.
Não obstante, convém observar que a gravura se afirmou como expressão
autônoma no momento em que, na Europa, ao final do século 19, o desenvolvimento
industrial chegou ao auge, com a produção crescente de máquinas e equipamentos,
inclusive com a invenção da fotografia.
Embora alguns pintores da época tenham se valido da fotografia para
imprimir maior realismo a suas telas, logo o inevitável aconteceu: a linguagem
realista da arte entrou em crise, e uma das consequências foi que a gravura
deixou de ser simples meio de reprodução gráfica para se tornar linguagem
criadora, autônoma.
Exemplo disso são as obras de Edvard Munch e dos expressionistas
alemães, como Kirchner e Rottluff. Um deles, Alfred Kubin, foi professor de um
jovem brasileiro chamado Oswaldo Goeldi, que se tornaria um dos mestres da
moderna gravura no Brasil, juntamente com Lívio Abramo.
Assim se inicia a fase de ouro de nossa gravura moderna, em que se
destacariam os nomes de Marcelo Grassmann, Darel Valença, Anna Letycia, Rubem
Grillo -que nos honra como ilustrador desta coluna- e Gilvan Samico, que é, na
verdade, o assunto desta crônica.
Conheço Samico há muitos anos, desde a época em que era um jovem artista
de Pernambuco, onde reside até hoje. Aliás, reside num casarão do século 17,
onde teria morado João Fernandes Vieira, o líder da luta pela expulsão dos
holandeses.
Mas, segundo Samico, trata-se de "um herói sem nenhum caráter, pior
do que Macunaíma". Sucede que, se sei disso, é porque acabo de ler um belo
livro sobre sua obra, recentemente lançado pela editora Bem-Te-Vi e escrito por
Weydson Barros Leal, poeta e crítico de arte também pernambucano.
Samico, no começo, estudou no Rio com Oswaldo Goeldi, por um mês apenas.
Depois estudou com Lívio Abramo em São Paulo, com quem aprimorou a técnica de
gravar, tanto no linóleo quanto na madeira. Lívio o aconselhava a usar qualquer
madeira, inclusive as das caixas de frutas que eram jogadas nas ruas.
Talvez porque o que importava, então, era conquistar o domínio técnico
da goiva e vencer as carências de uma placa de madeira pouco nobre. Com isso,
Samico aprendeu que a melhor madeira é a de cada um, mas também que a
"madeira de topo", por sua dureza, permite com maior precisão definir
a linha gravada. E isso é fundamental em sua arte, caracterizada pela limpidez
e pela precisão.
Limpidez e precisão no executar, em definir as figuras, estruturar a
composição e escolher com apuro as cores. Sim, porque, no mais, a arte de
Samico é sonho, delírio e poesia.
Rara e surpreendente conjugação de opostos: se no começo suas gravuras
nos mostravam cenas mágicas, em que a figura humana, os bichos e as plantas se
integravam, isso mudou; essas cenas foram substituídas por composições
geométricas rigorosas, dentro das quais, com o mesmo rigor formal, surgem
imagens inesperadas -que tanto podem ser serpentes, como répteis, como aves-
que parecem enigmas, cenas simbólicas ou lendárias que dispensam decifração.
E, não obstante, queremos decifrá-las, ou melhor, de fato não o
queremos, porque necessitamos de preservar-lhes o enigma, o encantamento. Há
nessas gravuras de grande tamanho algo que tanto lembra cartas de baralho (um
baralho mágico) quanto símbolos heráldicos.
Não gostaria de encerrar este comentário sobre a arte de Gilvan Samico
sem assinalar um traço especial que distingue a sua gravura da dos demais
gravadores brasileiros. É que nela a lição dos mestres modernistas se funde à
linguagem popular da gravura de cordel -herança portuguesa que sobreviveu na
cultura popular nordestina-, incutindo-lhe a significação e a beleza da grande
arte.
FONTE: ILUSTRADA/FOLHA DE S. PAULO
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