sexta-feira, 3 de maio de 2019

Populismo é a nova ameaça, diz cientista

Por Danilo Thomaz | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

RIO - Para o cientista político Yascha Mounk, professor da Universidade Johns Hopkins, a democracia liberal perde força no mundo e corre perigo. Autor do livro "O Povo Contra a Democracia", ele disse ao Valor que líderes populistas promovem o confronto com instituições nacionais, como o Judiciário, e internacionais, como a ONU, como estratégia para atiçar as massas. "Devemos ser honestos, a revolta contra as instituições, em parte, corresponde a um real ressentimento popular."

Embora a motivação possa ser legítima, isso não significa que os populistas "vão devolver o poder às pessoas", diz. Mounk vê riscos para o Brasil. "É presumível que Jair Bolsonaro tentará expandir seu poder, mas vai falhar nisso porque não tem o controle completo do Congresso.

A ameaça autoritária

Para o cientista político alemão, "é necessário limpar o sistema político e dar às pessoas a ideia de que um futuro melhor é possível"

A década que sucedeu à crise econômica de 2008 foi marcada por movimentos, à direita e à esquerda, que opuseram forças populares, instituições e sistemas políticos estabelecidos. Foram os anos do Tea Party, movimento conservador de 2009 que pretendia resgatar o ideal da velha república americana, e do Occupy Wall Street, que se opunha ao establishment do mercado financeiro. Foram também os anos dos indignados da Espanha, dos separatistas catalães, do Brexit, da Primavera Árabe e da luta por liberdade em Hong Kong. E de uma série de movimentos de diferentes tonalidades políticas no Brasil: desde o Movimento Passe Livre (à esquerda), que iniciou as Jornadas de Junho de 2013, até militantes bolsonaristas, em confronto com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.

O conflito entre a massa de cidadãos insatisfeitos e o sistema que compõe a democracia liberal é o cerne do livro de Yascha Mounk, "O Povo Contra a Democracia" (Companhia das Letras, trad.: Débora Landsberg e Cássio de Arantes Leite, 443 páginas, R$ 79,90), que acaba de ser lançado no Brasil.

Dividido em três partes, o livro analisa a crise da democracia liberal, suas origens e propõe soluções em diferentes âmbitos da vida nacional para combater o fenômeno do populismo e da democracia iliberal, sistema que se dispõe a desmontar as ideias, valores, regras, pactos e instituições que compõem a democracia liberal, em âmbito nacional e internacional, como a conhecemos. "A definição do populista é alguém que diz 'eu represento o povo e quem discordar de mim ou confrontar meu poder é ilegítimo", afirma o autor, cientista político e professor da Universidade Johns Hopkins (EUA), em entrevista ao Valor. "Acho que devemos ser honestos que isso [a revolta contra as instituições], em parte, corresponde a um real ressentimento popular."

Além do descontentamento com a estagnação econômica e do uso das redes sociais, o medo das pessoas e as incertezas em relação ao futuro afetam a relação com a democracia.

No entanto, segundo o cientista político de 36 anos, é preciso tomar cuidado. Embora a motivação possa ser legítima, segundo afirma, isso não significa que os populistas "vão devolver o poder às pessoas". O confronto aberto com instituições nacionais, como o Judiciário, e internacionais, como a ONU, antes de significar uma forma de democratização do sistema político, seria mais uma maneira de atiçar as massas, o que não significa que não possa ter consequências.

"Muitos estragos acontecem lentamente, de maneira paulatina. Grandes democracias estão sendo comandadas por populistas que são céticos perante as instituições internacionais. Eles podem ser bem-sucedidos em abolir algumas instituições", afirma.

O autor observa também o mesmo risco em caso de uma reeleição de Donald Trump, em 2020, para a Presidência dos EUA. "Não acredito que Trump vá ser um ditador em 2024", afirma. Isso não significa, porém, que não possa haver uma "gradual erosão das instituições" democráticas. "Setores da burocracia pública podem se tornar mais politizados."

O autor, que preparou um prefácio à edição brasileira, vê riscos semelhantes para o Brasil. "É presumível que Bolsonaro tentará expandir seu poder, mas vai falhar nisso porque não tem o controle completo do Congresso", afirma. No entanto, alerta: "O fato de um populista não ser bem-sucedido em tomar as instituições não muda suas aspirações".

A erosão do sistema político e das instituições liberais pode levar à destruição de uma série de direitos que compõem a vida democrática e protegem as minorias políticas, diz ele. No entanto, o pluralismo, que, nas últimas décadas tornou-se uma característica da vida democrática, não é, do ponto de vista histórico, parte essencial da democracia, nem propriamente desejo da maioria. Daí a importância de instituições, como o Judiciário, com o poder de confrontar maiorias na garantia dos direitos constitucionais.

"Obteve-se o fim da segregação [racial] não graças à vontade do povo americano, mas por uma instituição que tinha o poder constitucional de proibi-la", Mounk escreve. "Quando pensamos no movimento dos direitos civis, tendemos a pensar nos gestos corajosos de cidadãos comuns, de Rosa Parks a James Hood. E, no entanto, a história do movimento foi feita igualmente de decisões liberais que venceram a resistência de maiorias eleitorais."

Mounk se alinha ao cientista político David Runciman, autor de "Como a Democracia Chega ao Fim" (Todavia). Para ambos, diferentemente do que ocorrera no século XX, não é fácil afirmar quando uma democracia acaba e um Estado autoritário ou mesmo uma ditadura se instala. "Em países como a Turquia, que claramente não é mais uma democracia, não há um momento ou uma crise no qual o país cruzou o Rubicão [da democracia para a ditadura]", afirma.

O cientista político afirma que, no caso dos governos populistas, há uma série de ações que, individualmente, podem ser defensáveis, mas, juntas, destroem a democracia. E reconhece, citando o caso de Viktor Órban, da Hungria, a dificuldade em perceber os sinais de desmonte da democracia liberal quando ele está acontecendo. "Quando você olha para o 'New York Times', para o 'Wall Street Journal', nos primeiros anos do governo de Órban, é possível perceber uma 'visão positiva' acerca de algumas ações do presidente húngaro", diz. "Vemos o quanto é difícil, mesmo para observadores preparados e independentes, reconhecer a extensão dos danos que esses populistas causam ao sistema político no momento em que isso está acontecendo."

O autor, apesar de reconhecer que há gradações de populismo, não diferencia os campos da esquerda e da direita no que diz respeito aos danos causados à democracia liberal. "Qualquer governo populista tende a enfraquecer direitos individuais e é um perigo real para instituições democráticas", diz.

Em comum a todos os governos populistas, segundo Mounk, está o não reconhecimento da oposição como uma força política legítima; o ataque a instituições, como o Judiciário, e a classificação das mesmas como "inimigas das pessoas"; ataques à imprensa; tentativas de politizar as universidades públicas e torná-las instrumentos da propaganda governamental e a pressão sobre instituições como a Polícia Federal ou o FBI ao investigarem e prenderem aliados do governo.

Se não é fácil saber quando uma democracia acaba, tampouco é fácil dizer até onde vai a atual onda populista. Algo comum em diversos países é subestimar a popularidade do governante - bem como sua capacidade de permanecer no poder. "Muitas pessoas estão começando a desanimar [do governo Bolsonaro]. 'Esse governo é tão caótico, ele cometeu tantos erros, envolveu-se em tantos escândalos, que provavelmente vai cair'. E é perfeitamente possível", afirma. "Essa reação me lembra o que as elites disseram sobre Donald Trump, sobre Hugo Chávez. Muitos populistas permanecem no poder apesar dos escândalos, apesar da corrupção, apesar do caos do governo."

Essa distinção entre a resiliência de políticos e governos populistas e a percepção das elites "políticas, culturais e financeiras" acerca dos mesmos começa no próprio período eleitoral. Nos Estados Unidos, nem a vitória de Trump em sete Estados na "Super Terça", dia em que são realizadas primárias e cáucus em 11 Estados, no caso do Partido Republicano, foi capaz de levar os líderes do partido em massa a endossá-lo. No Brasil, o crescimento de Bolsonaro, embora fosse paulatino e consistente desde 2016, só foi devidamente considerado em meados de setembro de 2018, ou seja, às vésperas do primeiro turno das eleições.

"As elites intelectual, política e financeira estão distantes da maioria dos cidadãos. Em alguns círculos ninguém estava interessado em Trump ou Bolsonaro. Elas [as elites] não conseguem se conectar com o ressentimento [da população]. As razões do apoio a essas figuras, e a extensão disso, foi uma surpresa para elas."

Esse abismo entre as elites e o homem comum foi captado pelo economista francês Thomas Piketty, autor de "O Capital no Século XXI" (Intrínseca), no estudo "Brahmin Left vs Merchant Right: Rising Inequality and the Changing Structure of Political Conflict". "Nos anos 1950 e 1960, o voto nos partidos de esquerda estava associado à baixa qualificação e baixa renda", o que, segundo o estudo, levava à formação de um sistema político baseado nas classes sociais. "Desde os anos 1970 e 1980, o voto de esquerda tem sido associado a eleitores de melhor formação", gerando "um sistema partidário de 'múltipla elite' nos anos 2000-2010" no qual "elites bem-educadas votam à esquerda enquanto as elites econômicas votam na direita".

Os números presentes no estudo demonstram a afirmação: na França, em 1956, 57% dos eleitores dos partidos de esquerda tinham ensino fundamental, enquanto 37% tinham superior. Em 2012, 47% dos eleitores eram do ensino fundamental, enquanto 57% tinham nível superior. Processo semelhante ocorreu nos EUA. Em 1948, 63% dos eleitores do Partido Democrata tinham ensino fundamental, 5% nível superior e apenas 1% mestrado ou pós-graduação. Em 2016, apenas 9% dos eleitores tinham nível primário, 19% tinham nível superior, 11% tinham mestrado ou pós-graduação e 2% eram doutores.

A mudança no perfil dos eleitores dos partidos de esquerda, segundo o estudo, "pode contribuir para a desigualdade crescente e a falta de uma resposta democrática para isso" ao "aumento do 'populismo'", uma vez que "os eleitores de menor renda e escolaridade sentem-se abandonados".

De acordo com Mounk, o estudo exemplifica um fato: o que define o voto e a disputa política hoje "não é mais a questão econômica, mas, sim, a cultural". "É um mundo diferente daquele que vivemos no pós-Guerra. A economia já não é o mais importante. O que define o voto de uma pessoa são os valores culturais", diz. "A verdadeira distinção entre um professor universitário e o alto executivo de um banco não é mais quem ganha mais dinheiro, mas que tipo de educação receberam, como veem a si mesmos." Isso vale também para os políticos. "Bolsonaro tem pontos-chave bem definidos sobre a questão moral, mas ninguém sabe bem que tipo de política econômica ele vai implementar."

Diferentemente do senso comum estabelecido após a vitória de Trump, o livro mostra que não foram os mais pobres e os desempregados que o elegeram. "Enquanto americanos que votavam em Trump tinham uma renda familiar de quase US$ 82 mil por ano, por exemplo, eleitores contrários a ele tinham renda familiar pouco superior a US$ 77 mil", escreve em "O Povo Contra a Democracia". O autor cita o estudo "Explaining Nationalist Political Views: The Case of Donald Trump" que mostra "a tendência a estar desempregado e a tendência de estar empregado em regime parcial" ser menor entre os eleitores de Trump.

"Uma das coisas que é muito importante no que diz respeito ao populismo é a questão do status social, como elas [as pessoas] se sentem perante as mudanças culturais e demográficas", afirma. "Pessoas que sentem que tiveram uma perda de status social nos últimos 30 anos estão mais propensas a votar nos populistas." Portanto, a questão é menos a perda econômica e mais de apreensão econômica. "Entre os simpatizantes de Trump", escreve no livro, "a probabilidade de ter curso superior ou formação profissional é bem menor, o que sugere possuírem motivos muito melhores para temer que suas perspectivas econômicas possam sofrer com a globalização e a automação".

Outro ponto é o aumento do número de imigrantes na área rural. "Em 1980", escreve, "dois terços de todas as comunidades americanas eram altamente homogêneas", ou seja, os brancos equivaliam a "mais de 90%" da população. Em 2010, apenas um terço das comunidades tinham essa formação demográfica.

No começo dos anos 80, o Partido Democrata americano criou a figura dos superdelegados, que votam de maneira independente ao voto popular na escolha do candidato presidencial. A medida foi uma maneira de estabelecer um contrapeso ao voto da maioria e, assim, barrar ou mitigar as chances de candidatos populistas nas eleições presidenciais.

Mounk afirma que os partidos políticos têm uma alta responsabilidade na estabilidade política e que é necessário "partidos fortes", com uma agenda e reputação bem estabelecidas, em um cenário que mais favorável para os "outsiders capturarem os partidos", como pôde-se ver com Donald Trump no Partido Republicano e com Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista da Inglaterra. No entanto, o cientista político propõe uma agenda além do fortalecimento dos partidos para barrar o avanço populista e a democracia iliberal. Entre as medidas, estão a construção de uma social-democracia moderna, em que os direitos sociais não estejam atrelados ao custo do trabalho, uma tributação mais justa e uma política habitacional menos excludente.

"O projeto de reconstruir a democracia não pode se resumir a mostrar que determinado político populista é irracional ou imoral. É necessário limpar o sistema político e dar às pessoas a ideia de que um futuro melhor é possível."

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