- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
A oposição que me perdoe, mas, no curto prazo, o maior inimigo do governo federal é o próprio governo. A ausência de um projeto oposicionista de reforma do Estado e a crise atual do petismo constituem parte da explicação desse fenômeno. Só que existe outro lado mais importante neste processo: o eleitorado e os apoiadores de Jair Bolsonaro são muito mais amplos e heterogêneos do que o discurso mais sectário adotado regularmente pelo presidente. É disso que decorre o surgimento do vice-presidente, Antônio Hamilton Mourão, como sombra, contraponto e, numa hipótese mais extrema, alternativa real de poder.
Evidentemente que essas circunstâncias não são novidade no país. O presidencialismo brasileiro, pelo menos desde a Constituição de 1945, é marcado pelo possível conflito entre o titular e seu vice. Naquela época, a possibilidade de eleger uma dupla com políticos vindos de chapas diferentes, como foi o caso de Jânio Quadros e João Goulart, potencializava a crise. Mas mesmo durante o período autoritário houve embates fortes, como no caso de João Figueiredo e Aureliano Chaves. A falta de um papel institucional mais claro para a vice-presidência explica parte desse problema, contudo, no mais das vezes, são os erros do presidente que dão asas ao seu par.
O tipo de presidencialismo derivado da Constituição de 1988 tornou mais importante e complexa a montagem da coalizão de governo, por meio da combinação de multipartidarismo, federalismo e divisão de Poderes. O sistema não é ingovernável, como mostraram Fernando Henrique e Lula, no entanto, nenhum presidente ou partido consegue governar sozinho o país, de modo que é necessário angariar apoios políticos e sociais amplos e heterogêneos. Quando Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff perderam a capacidade de atrair os atores para além de seu grupo político mais restrito, abriram as portas não só para o próprio impeachment, mas também para a ascensão de seus vices.
É essa realidade mais geral que o presidente Bolsonaro precisa compreender. Embora a eleição dele tenha sido marcada pela crise do sistema político montado na Nova República e consolidado a partir do Plano Real, dois fatores continuam contribuindo para a necessidade de se governar por coalizão e levar em conta um espectro mais amplo de apoios. O primeiro é que sua vitória eleitoral não adveio do bolsonarismo raiz. O tamanho deste talvez esteja próximo dos dados da última pesquisa do Datafolha feita antes da trágica facada, enquete realizada nos dias 20 e 21 de agosto e que marcava 22% de preferências pelo então candidato Bolsonaro.
O episódio da facada e a incapacidade de outros candidatos de centro subirem nas pesquisas favoreceram a migração de um grande contingente de eleitores antipetistas ainda no primeiro turno para Bolsonaro, processo que se completou no segundo turno com a aquisição de votos de outro grupo considerável de cidadãos que não queriam o PT no poder. No computo final, o presidente eleito teve 55% dos votos válidos, mas deve-se ressaltar que, além dos que votaram em Fernando Haddad e daqueles que se abstiveram ou votaram branco e nulo, muitos dos que elegeram o novo governante, quiça a metade destes, não se identificavam com o bolsonarismo raiz.
Diante disso, o discurso do presidente precisa ser mais amplo e plural do que o conteúdo de seus tweets. Ao falar basicamente ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro abre o flanco para o descontentamento de grande parte dos que votaram nele, para não falar dos oposicionistas e dos que não votaram em nenhum dos candidatos. Sei que seus estrategistas, principalmente seus filhos, têm uma opinião diferente. Eles preferem seguir a máxima de Trump, de apostar na manutenção do apoio dos mais fiéis. Só que há uma enorme diferença entre os Estados Unidos bipartidário e o Brasil multipartidário: aqui, sempre é possível ter mais opções políticas do que a luta entre um governo e uma oposição bem definidos.
Hoje, Mourão é a voz da moderação em comparação a Bolsonaro, atraindo a simpatia dos que votaram no presidente, mas não são bolsonaristas, e até dos que votaram no candidato da oposição. Esse poder de atração, entretanto, é um fator mais forte na esfera política e junto aos grupos de interesse mais influentes, como as instituições financeiras, a mídia, parte do empresariado, universidades e outros setores da sociedade civil organizada. É neste âmbito que há mais gente comparando o desempenho do presidente com o do vice.
A estratégia política de Bolsonaro, de discursar basicamente para os seus eleitores mais fiéis, principalmente usando as redes sociais, é a maior alavanca para o crescimento do poder de Mourão. Quando ele usa o argumento da "nova política versus a velha política" e emperra o processo político no Congresso Nacional, aqueles que querem a aceleração das reformas de Estado ficam mais descrentes do bolsonarismo e, como viúvas de seu próprio voto, procuram alguém para se consolar dentro do condomínio do governismo - se não for o vice, pode ser o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Ao atacar como inimigos da pátria grupos como a mídia, os ambientalistas, os ativistas sociais, as universidades, os professores, as minorias éticas ou de gênero e todos aqueles que não cabem no perfil bolsonarista raiz, Bolsonaro não atinge apenas a oposição. Seus atos e palavras desagradam mais gente e muitos dos seus eventuais eleitores de 2018, que não queriam o PT, mas que estão longe de um sectarismo conservador. O uso constante e radical dessa linguagem política contrasta com a comunicação feita agora por Mourão, que se orienta pela parcimônia no discurso e pela conversa com todos os atores sociais.
O contraste entre presidente e vice também é percebida no plano das relações internacionais. Se Bolsonaro radicaliza o discurso sobre a Venezuela, Mourão adota uma postura mais cuidadosa e realista. Se o bolsonarismo propõe que a embaixada em Israel vá para Jerusalém, o vice conversa com os representantes dos países árabes. E toda vez que o discurso da Presidência da República for contra o multilateralismo (ou globalismo, como diriam os olavistas) e agendas internacionais mais consolidadas, como a questão ambiental, parte dos atores internacionais vai procurar o morador do Palácio do Jaburu.
Mas o maior tiro no pé da estratégia política bolsonarista é tensionar a relação com os militares. O discurso olavista, vindo do próprio ou dos filhos do presidente, começou batendo em Mourão e, pouco a pouco, migrou suas insatisfações para as Forças Armadas. Imagine se Olavo de Carvalho fosse apoiador de Lula ou Fernando Henrique e tivesse dito o que falou dos militares e de alguns de seus líderes específicos. Nem é possível imaginar.
Talvez a razão que levou setores do bolsonarismo a criticar o comportamento dos militares esteja no fato de que as lideranças das Forças Armadas, no mais das vezes, entenderam o sentido político do governo atual: para ter uma governabilidade efetiva, é preciso ampliar o diálogo e mesmo a negociação para além dos circuitos mais fechados do PSL e dos apoiadores de primeira hora do presidente Bolsonaro. E, neste sentido, comportam-se do mesmo modo que Mourão - e de maneira inversa à lógica dos tweets do presidente e seus filhos.
Claro que muitos atores políticos e analistas podem, com razão, pedir maior discrição no comportamento de Mourão. Porém, não se trata somente de uma situação individual. Do mesmo modo que o presidencialismo de coalizão responde a questões estruturais do sistema político e da sociedade brasileira, é possível dizer que quando o presidente não consegue manter um amplo apoio dos partidos e de diversos setores sociais quase que naturalmente surge um "vice-presidencialismo de conspiração". Isso já aconteceu antes, como nos casos de Collor e Dilma no período mais recente.
Pode-se acusar os vices de conspiradores, todavia, a maior causa desse processo está na inabilidade dos presidentes. Sempre se fala bem de Marco Maciel e José Alencar, pela sua lealdade em relação ao companheiro de chapa presidencial. Isso é verdade. Só que o comportamento deles esteve muito vinculado à qualidade da liderança e dos governos de Fernando Henrique e Lula, que conseguiram manter, por um longo tempo, um apoio político e social que era maior do que os seus partidos. Do outro lado do fenômeno, Itamar e Temer foram vistos como alternativa de poder quando a possibilidade de impeachment surgiu, mas vale lembrar que não eram vistos com bons olhos antes. A instabilidade e a mudança política derivaram mais dos erros dos respectivos presidentes do que pela grande capacidade conspiratória dos vices.
O presidente Bolsonaro e parte dos seus apoiadores precisam aprender com a história recente do país. Mais ainda agora, num momento em que o Brasil, mesmo se fizer reformas certas, vai demorar pelo menos dois anos para sair da crise econômica e social. Em vez de brigar com Mourão, deveriam tê-lo como ponte junto aos atores que não são bolsonaristas de raiz. Sem esse elo, a travessia será mais difícil e pode nos levar não ao Éden, mas a uma nova instabilidade política do presidencialismo de coalizão, antessala do "vice-presidencialismo de conspiração".
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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