- Revista Época
A religiosidade tacanha e o anti-intelectualismo são aspectos centrais dessa ideologia do retrocesso
Não assisto a novelas desde Roque Santeiro , e, por isso, não assisti a Avenida Brasil , sucesso de público e de exportação em 2012. Contudo, lembro bem o furor causado pela trama e, sobretudo, pelos personagens. Avenida Brasilquebrou padrões ao retratar a vida da chamada nova classe média brasileira, as dezenas de milhões de pessoas que viram seu padrão de vida melhorar durante os anos 2000 com a queda da informalidade do mercado de trabalho e as oportunidades que se abriram naquele período por motivos diversos. A novela acabou em 2012, alguns meses antes dos protestos em massa que eclodiriam em todo o país. Os protestos de 2013 e a falta de respostas dos políticos a uma clara frustração da sociedade brasileira marcariam o início da implosão do centro político. Abrir-se-ia nova fase na radicalização que dali viria a definir os rumos do Brasil, chegando no bolsonarismo.
Nestes quatro meses de governo, já é possível dar contornos ao bolsonarismo. Trata-se, antes de mais nada, de uma “ideologia do retrocesso”, caracterizada por muita ignorância sobre o Brasil, um desprezo pelas redes de proteção social criadas nos últimos 30 anos e a visão tosca de que a diversidade — de gêneros, de ideias, de opiniões, de raça — não é algo a ser cultivado, mas algo a ser condenado como fruto do “marxismo cultural”, do “globalismo”, da “esquerda”.
Damares Azul-Rosa Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo são a porta-bandeira e os mestres-salas do bolsonarismo. Não rodopiam com leveza, apenas se expressam com notável rudeza e falta de sofisticação.
O bolsonarismo, cujos contornos dificilmente haverão de se alterar nos próximos meses e anos, poderá abrir imensa oportunidade, verdadeira Avenida Brasil, para as vozes progressistas, se essas souberem utilizá-lo. Para isso não bastará apenas manifestar contrariedade e fazer denúncias quanto aos atos e às falas do presidente e de seus ministros. Para além disso, será necessário apresentar propostas alternativas ao desmantelamento que já se vê em diversas áreas, do meio ambiente à educação, da política externa ao esgarçamento das redes de proteção social. A visão minimalista de Paulo Guedes não é compatível com a de um Estado que tenha políticas claras para o combate às desigualdades. E esse tema não interessa a Bolsonaro.
Segundo os dados mais recentes do IBGE, o desemprego no país continua a subir, tendo alcançado 12,7%. São 13,5 milhões de desempregados e nenhuma perspectiva de melhora pela frente, já que todos estão agora revisando para baixo as projeções de crescimento para o ano. Como já havia escrito antes, para o desagrado daqueles que ainda não haviam se dado conta da realidade na ocasião, estamos por ora fadados a crescer em torno de 1% ao ano, não mais do que 1,5% ou 2% mais à frente, caso a situação melhore um pouquinho. Essas taxas não são suficientes para que recuperemos o nível do PIB de 2013 antes de 2022. Essas taxas tampouco são suficientes para reduzir substancialmente o desemprego. A sociedade continuará desalentada, mesmo que a reforma da Previdência seja aprovada.
Mas, se a reforma da Previdência for aprovada com alguns ajustes importantes para que não seja parte do desmonte da rede de proteção social do país, o bolsonarismo deixará excelente oportunidade para o centro: um médio prazo mais arrumado para as contas públicas. Com a arrumação do médio prazo, haverá espaço para retomar uma agenda de políticas sociais e de investimentos públicos que ajudem o país a sair do atoleiro — a condição necessária é que essas políticas preservem a sustentabilidade fiscal de médio prazo. Portanto, o bolsonarismo está abrindo alas para que os moderados comecem a construir tanto um discurso quanto uma agenda de propostas concretas e bem concatenadas desde já. A liderança que encampe essas ideias e que seja um rosto novo na política brasileira — preferencialmente mais jovem — tem mais chances de eliminar o bolsonarismo em 2022 que qualquer alternativa da esquerda presa ao estatismo excessivo que teima em não se atualizar e modular suas posturas.
As pessoas que se viram retratadas e representadas em Avenida Brasilsão as mesmas pessoas que estarão buscando essa via no carisma de alguém que ainda não apareceu. Está na hora de o protagonista dar as caras.
*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
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