No mesmo dia, na imprensa e em redes sociais, publicou-se imagens fotográficas
da queima, no Rio de Janeiro, de uma estátua de Pedro Álvares Cabral, protagonista
da narrativa fundacionista do Brasil historiograficamente consagrada e, por
isso mesmo, contestada por um revisionismo histórico proposto por correntes
acadêmicas e ativistas de movimentos políticos. A fidelidade jornalística ao
registro do fato vincula-o a um protesto em defesa de populações indígenas (ou
de “povos originários”, conceito histórico-político amplamente aceito hoje,
para nomeá-las e legitimar a causa) e contra o estabelecimento de um marco
temporal que reinterpreta e redefine seus direitos constitucionais, discussão
ora em curso no Judiciário e no Legislativo brasileiros.
A fotografia do acontecimento carioca e do conflito conjuntural a
que se vincula é, como na metáfora de Gasset sobre a derrocada de sua Espanha,
insuficiente para a plena compreensão do processo em que o fato se insere.
Estamos - assim como se estava na Espanha a duas décadas de uma guerra civil -
diante de um script cinematográfico. Processo contínuo, que se não for
refratado, pedirá um Picasso vindouro para pintar, como aviso aos pósteros a
essa quadra perigosa que vivemos, o quadro agonístico das Guernicas que gestos
insólitos como aquele preparam. Com isso quero dizer que não é do conflito de
interesses e valores entre agronegócio e povos originários que tratarei aqui.
Sem desqualificar sua importância para a pauta política e social do presente,
evitarei conferir-lhe a centralidade fotográfica que lhe atribui a gramática
polarizadora em voga. Peço passagem para outra pauta, que é coisa de cinema.
Quero discutir as depredações como tema político em si, autônomo
(embora não alheio), face a causas econômicas e sociais. E não se trata de
questionar apenas o fogo como meio, mas os fins desse gesto iconoclasta. A
discussão, conforme a sinto, é sobre se estamos dispostos a deixar que nossa
História seja incinerada sem levantar nossa voz contra isso.
Muitas das críticas pontuais à violência como método costumam ser apenas céticas quanto às possibilidades de que ela, a violência, atinja, no caso, o objetivo supostamente nobre ao qual, também supostamente, esse ativismo se dedica, isto é, o de revogar a história “escrita pelos opressores” e reescrevê-la “sob a ótica dos oprimidos”. Acho preciso falar contra isso, sem meias palavras e logo, antes que a extrema direita, espertamente, o faça.
Mas penso que há um passo a mais a dar, além de manifestar esse lúcido
ceticismo. Num momento em que a destruição é o tom da política (na verdade, da antipolítica)
imposta por quem deveria governar o País, é preciso ir além de um não ao não
estéril desse ativismo carbonário que emula e ajuda o exterminador. É preciso
dizer sim ao que a nossa história prevalecente instituiu. Um sim que não é
sanção, é reconhecimento de uma condição.
Ainda que povoada de iniquidades, não só delas a história nacional se
fez. Nela estão marcas do labor e obras voltados a torná-la melhor, segundo
aspirações em disputa e valores compartilhados, em cada época. Labor e obras
que, de modo algum, foram fracassos. Esse juízo maniqueísta, inquisitorial e
anacrônico sobre a construção do Brasil, que avalia a obra de atores e
movimentos do passado pelo metro de desejos e demandas contemporâneos, nega luz
a algumas virtudes políticas de nossas ambiguidades tradicionais. Se cabem
ideias de reformar essa tradição, a ideia-força da pacificação precisa estar no
centro, não no limbo da política e da história que estamos fazendo hoje. Devemos tão somente achar modos mais
civilizados de derrubar as prateleiras, as estátuas e as estantes que nos
acompanharam até aqui? Ou conservá-las, no limite do razoável?
Uma noção de perigo exige uma atitude política que mostre a incautos o
quão estamos distantes de 1968, muito mais do que de 1929; quão é grave
derrubar estátuas, estantes e prateleiras numa hora em que o fascismo não é
mais passado e nos assombra, de novo, com sua atualidade, em vários países.
Efeitos nefastos da falta dessa noção podem ir muito além das mazelas
intelectuais legadas pelas vertigens de 1968 e que José Guilherme Merquior tão
bem apontou no seu O marxismo ocidental. A rejeição moral, culturalista, ao
capitalismo e ao mercado, a cada dia mais realidades imperativas para a vida
das pessoas comuns; a estetização da política por um discurso crítico da razão;
a hipervalorização da vontade política como via de libertação contra a
racionalidade das instituições, tudo isso afetou, sem matar, o pensamento da
geração seguinte. Mas agora o preço pode ser a integridade mental e mesmo
física da comunidade política. Nas circunstâncias do mundo atual, em que a
década 1930 está politicamente mais próxima que ade 1960, reclamando mais
Churchills do que Sartres, iconoclastia é ímpeto colaboracionista com o
agressor. Fazem falta pensamentos reformadores que recusem nacionalismos, mas
ajudem seus países a resgatarem seus selfs nacionais. Sem dizerem sim a si, as nações
impactadas pela força de gravidade global nada terão a contribuir para um
cosmopolitismo generoso.
É por isso que considero apropriado olhar para a estátua de Cabral na
fogueira e pensar em Ortega y Gasset. No seu texto, o enredo cinematográfico do
infortúnio espanhol, narrado com sentimento e razão, traça, retrospectivamente,
um caminho que começa no particularismo dos atores e termina em inelasticidade
social. Vale-nos como prevenção:
(...) A
essência do particularismo é que cada grupo deixa de sentir-se a si mesmo como
parte e em consequência deixa de compartilhar os sentimentos dos demais. Não lhe importam as
esperanças ou as necessidades dos outros (...). Por outro lado, é
característico deste estado social a hipersensibilidade para os próprios males.
Irritações e dificuldades que em tempos de coesão são facilmente suportados,
parecem intoleráveis quando a alma do grupo se desintegrou da convivência
nacional (...)
(...) Dizem que os políticos
não se preocupam com o resto do país. Isto, que é verdade, é, contudo, injusto,
porque parece atribuir exclusivamente aos políticos tal despreocupação. A
verdade é que se para os políticos não existe o resto do país, para o resto do
país existem muito menos os políticos. E o que acontece dentro desse resto não
político da nação? (...). Cada agremiação vive hermeticamente fechada em si
mesma. (...)Rodam umas sobre as outras como órbitas estelares que se ignoram
mutuamente. Polarizada cada qual em seus tópicos gremiais, não tem nem notícia
dos que regem a alma do grupo vizinho. Ideias, emoções, valores criados dentro
de um núcleo profissional ou de uma classe, não transcendem minimamente às
restantes. O esforço titânico que se exerce em um ponto do volume social não é
transmitido, nem obtém repercussão a alguns metros de distância, e morre onde
nasce.
Propus ir além da reação e do ceticismo. Pauta positiva, sim, mas outra
pauta. Não a iconoclasta, que resulta de um racionalismo jacobino, sempre
oscilando entre delírios subjetivistas e o pragmatismo de interesses mal
compreendidos. Pauta positiva para dialogar com os “de baixo” reais do país,
não com seres simbólicos, imaginários, estetizados por ideologias que vão parar
no obscurantismo. Um caminho do meio, para dialogar com gente para quem, ao
tempo em que "cada tauba que caía doía no coração", faz sentido dizer
que "os home tá com a razão, nóis arranja outro lugar".
Nem as pessoas treinadas nos ofícios de estudar e pensar, nem os
matogrossos e jocas do Brasil, precisamos de pautas postiças. Aos primeiros
cabe baixar a bola e falar a língua de quem busca cobertores adequados a seus
vários frios e, na chuva, aprende, com o tempo, a encontrá-los não apenas nos
estoques de Deus (embora neles também, por que não?). Talvez lhes ocorra
reformar sua atitude resignada de deixar a vida lhes levar. Mas se o fizerem,
em algum momento, não será porque vanguardas iluminaram seu caminho. Será para
reformar, sem renegar, a nossa tradição, pois ela também tem lá a sua
serventia. O caminho do meio não subestima o amor que pessoas sentem pelas suas
saudosas malocas.
Assim a maloca, assim a história de cada pessoa e a do nós nacional em
contínua construção. Pauta positiva só pode vir daí. Não há caminho do meio
possível se aceitamos, sociológica ou filosoficamente, a naturalização
coercitiva de pautas incendiárias. Inexistem “verdadeiros anseios”. Eles são
sempre contingentes, descobertas da vida em comum. Vanguardas não são apenas
equívocos de método. São enganos existenciais.
Embora seja também verdade que aumenta a aceitação social das pautas
revisionistas. É um processo de mudança de mentalidade que transcorre sob
nossos olhos. Processo, no entanto, que não é nem irreversível, nem
automaticamente virtuoso. Do ponto de vista da democracia, por exemplo, algumas
das novas tendências em processo (como a promoção de maior igualdade entre os
indivíduos, pela consideração de suas diferenças de condição) democratizam a
própria democracia. Outras, como, por exemplo, a de refundar identidade e
história do país, empobrecem um repertório que, historicamente, vem se tornando
cada vez mais plural e dilapidam um patrimônio que, sendo cada vez mais
democrático, já fez Pedro Álvares Cabral sair da vida para se tornar História.
Por que trazê-lo de volta? Não será esse um flerte indesculpável com as taras
regressistas dessa má hora que vivemos?
*Cientista político e professor da UFBa.
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