O Globo
O poder do terrorismo reside em fazer crer
que é capaz de tudo, até do inimaginável. Não tem pátria nem precisa de
conquistas territoriais para ser vitorioso. O ato terrorista é,
simultaneamente, um meio e um fim em si, a exceção e o exemplo, a propaganda e
o produto. Como o propósito de um atentado não é derrotar o inimigo, e sim
humilhá-lo, desnorteá-lo, suas vítimas ideais são civis anônimos explosíveis a
granel. O único imperativo, senão o mais relevante, é que a carnificina seja
extremada.
Bastaram dois terroristas suicidas envoltos em explosivos para que o grupo Estado Islâmico-K (EI-K) transformasse um dos acessos ao aeroporto de Cabul em matadouro — pelo menos 170 civis afegãos em fuga e 13 fuzileiros navais dos EUA viraram carne humana. De nada adiantou o trabalho de inteligência que alertara sobre a iminência de uma ação desse tipo. Em meio à massa humana de desesperados, nem a maior potência militar foi capaz de impedir indivíduos radicalizados de querer matar e morrer. Essa é a força do terror.
A menos de 60 quilômetros dali jazia,
abandonada e desossada, a outrora poderosa base aérea de Bagram. Epicentro do
poderio dos EUA e da Otan no Afeganistão, a base de 20 quilômetros quadrados de
área chegou a abrigar cem mil soldados, estacionamento para cem
caças-bombardeiros e uma avenida principal chamada Disney Drive. Bagram foi
abandonada na calada da noite de 6 de julho, de soslaio e sem aviso prévio ao
país ocupado, deixando para trás uma parafernália de 3,5 milhões de itens, além
de blindados e munição. Cumpriu-se ali o que parecia ser o capítulo mais
controverso da retirada americana de solo afegão. Na verdade, foi o mais fácil.
Como se viu, mesmo uma decisão acertada — encerrar mais esta guerra perdida em
terra estrangeira — precisa de liderança eficaz, planejamento intrincado,
execução azeitada. Ainda que Joe Biden fosse o comandante em chefe certo para a
empreitada, o que decididamente não é, a retirada sempre seria inglória, suja e
feia. Sempre são. Como as Forças Armadas dos EUA nunca aprenderam a lidar com
massas assimétricas em país ocupado, e no Afeganistão voltaram a acreditar na
excepcionalidade de seu poderio militar, o caos se avolumou.
Tem mais. O Conselho de Segurança Nacional
(NSC), cuja função é definir e decidir os rumos da política externa americana,
tornou-se um verdadeiro dinossauro, “um corpo enorme e pouco cérebro”, escreveu
Fareed Zakaria no New York Times. “Preparativos e memorandos passaram a
substituir ação efetiva”, aponta o analista. Nada menos que 36 reuniões
realizadas desde abril se dedicaram a uma saída viável do Afeganistão, ocupando
horas e mais horas de funcionários graduados. Nada andou. O NSC, quando
recriado por Henry Kissinger nos anos 1970, tinha 50 membros. Foi se
agigantando até chegar aos 350 atuais. Para tempos de decisões prementes
capazes de mudar a História, não é bom.
Pode-se afirmar com alguma segurança que os
EUA perderam uma chance para sair do Afeganistão uma década atrás, em maio de
2011, quando conseguiram localizar e matar Osama bin Laden em seu esconderijo
no Paquistão. Idealizador dos ataques terroristas do 11 de Setembro e líder
máximo da organização Al-Qaeda abrigada no Afeganistão, Bin Laden era a face da
“guerra ao terror” decretada por George W. Bush. Seu assassinato pelo Comando
de Operações Especiais foi festejado a largos pulmões na Casa Branca de Barack
Obama, que poderia ter dado a missão original como cumprida e iniciado as
tratativas para uma sempre difícil retirada. Não foi sua opção. Joe Biden, à
época vice-presidente e parceiro diário nas decisões de Obama, achava que o
comando militar embrulhava o chefe. Tinha razão.
Passaram dez anos desde aquela janela em
2011, e chegou a vez de Joe Biden ficar face a face com suas decisões. A
tragédia está longe de ter fim. “Turboparalisia”, termo cunhado pelo ensaísta
Michael Lind para marcar certo tipo de erupção na geopolítica, volta a adquirir
atualidade. Designa uma combinação de ações vigorosas, dramáticas, com ausência
de caminho claro. “É como se as rodas das nações-Estados e do mundo estivessem
girando furiosamente, com todos os motores ligados, mas sem nenhum efeito”,
explica o autor.
A partir desta terça-feira , fatídico dia
31, inicia-se uma nova etapa no castigado Afeganistão. Falta apenas saber a
faceta do inevitável conflito. Talvez ele assuma o formato de guerra civil
entre o Talibã e jihadistas do EI-K por controle territorial. Ou do Talibã
contra bolsões de afegãos que conheceram 20 anos de emancipação pessoal.
Futuras incursões militares dos EUA para tentar erradicar novas cepas da Al-Qaeda
também não devem ser excluídas.
Por ora, prevalecem o horror, a tragédia e
os mercadores da morte. Erik Prince, sinistro fundador da empresa de segurança
Blackwater, que não perde uma guerra e foi responsável por uma das maiores
chacinas de civis iraquianos — a sangue-frio e a serviço dos EUA —, está a
postos. Ofereceu lugar em voos fretados partindo do aeroporto de Cabul a quem
pudesse pagar US$ 6.500 (R$ 34 mil), mais um extra para quem precisasse ser
resgatado de casa. Toda guerra tem seus Eriks Princes. A seu modo são, também,
terroristas. Matam nossa humanidade.
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