Folha de S. Paulo
Preço a pagar por atravessar o Rubicão pode
ser alto
Na Roma antiga existia uma lei segundo a
qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio
Rubicão, que demarcava ao norte a fronteira com a província da Gália, hoje
correspondente aos territórios da França, Bélgica, Suíça e de partes da
Alemanha e da Itália.
Em 49 a.C., o general
romano Júlio César, após derrotar uma encarniçada rebelião de tribos
gaulesas chefiadas pelo lendário guerreiro Vercingetórix, ao término de
demorada campanha transpôs o referido curso d’água à frente das legiões que
comandava, pronunciando a célebre frase: “A sorte está lançada”.
A ousadia do gesto pegou seus concidadãos
de surpresa, permitindo que Júlio César empalmasse o poder político,
instaurando uma ditadura. Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a
punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco
Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.
O episódio revela, com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores.
No Brasil, como reação ao regime
autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição
de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias
fundamentais, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de
grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado
democrático”.
O projeto de lei há pouco aprovado pelo
Parlamento brasileiro, que
revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos
autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de
subverter as instituições vigentes, “impedindo ou restringindo o exercício dos
poderes constitucionais”. Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de
Estado, caracterizado como “tentar depor, por meio de violência ou grave
ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ambos os ilícitos são sancionados
com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência.
No plano externo, o Tratado de Roma,
ao qual o Brasil recentemente aderiu e que criou o Tribunal
Penal Internacional, tipificou como crime contra a humanidade, submetido à
sua jurisdição, o “ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer
população civil”, mediante a prática de homicídio, tortura, prisão,
desaparecimento forçado ou “outros atos desumanos de caráter semelhante, que
causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade
física ou a saúde física ou mental”.
E aqui cumpre registrar que não constitui
excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas
auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a “defesa da lei e
da ordem”, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração,
aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes.
A propósito, o Código
Penal Militar estabelece, no artigo 38, parágrafo 2º, que “se a ordem
do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há
excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior”.
Esse mesmo entendimento foi incorporado ao
direito internacional, a partir dos julgamentos realizados pelo tribunal de
Nuremberg, instituído em 1945, para julgar criminosos de guerra. Como se vê,
pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o
Rubicão.
*Ministro do Supremo Tribunal Federal e
professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário