Valor Econômico
A ancoragem das expectativas não pode ser
tida como certa
O ano começou sob o signo do excepcionalismo da economia dos Estados Unidos. O excepcionalismo refere-se à capacidade da economia americana de crescer consistentemente mais do que as demais economias avançadas e do que muitas emergentes também. Essa performance exuberante seria resultado de uma combinação única de estabilidade institucional, sistema legal independente e eficiente, desenvolvimento dos instrumentos financeiros e capacidade de atrair capital humano e financeiro para sustentar uma máquina de inovações. É inegável que o ecossistema de inovação que se observa nos EUA não tem equivalente em outros países, ainda que o setor de tecnologia da China também venha mostrando dinamismo e criatividade.
O cenário mudou desde então. O choque de
incerteza que está impactando a economia americana levou a um aumento da
probabilidade que o país entre em recessão. Além da incerteza sobre o comércio
internacional, a economia terá que absorver outro choque de oferta negativo, o
da restrição à imigração no mercado de trabalho, bem como os efeitos sobre as
taxas de juros de uma política fiscal que, de forma certa ou errada, é
percebida como insustentável. As recentes negociações entre EUA e China, que
levaram a uma importante (por ora temporária) redução das tarifas comerciais
bilaterais, amenizam, mas não eliminam o problema.
Um choque de oferta negativo, no contexto dos
bancos centrais que perseguem metas para a inflação, usualmente prescreve que
as autoridades não reajam ao efeito primário, mas que estejam prontas para
atuar caso efeitos secundários, evidenciados por uma contaminação das
expectativas de inflação, ameacem aparecer. No caso do Fed, o banco central
americano, a situação é complicada por um anacrônico mandato amplo: desemprego
baixo, estabilidade de preços e taxas de juros de longo prazo moderadas -
legislação que data dos anos 1970, quando o conhecimento sobre as
possibilidades e limitações da política monetária não era o que é hoje.
O dilema do Fed foi reconhecido pelo seu
presidente, Jerome Powell, que apontou riscos para os dois lados do mandato. A
declaração de Powell foi simétrica. No entanto, em um movimento que já vinha
desde o momento em que as perspectivas para o crescimento americano pioraram,
os mercados simplesmente reduziram o apreçamento de cortes de juros à frente,
mas mantiveram o viés de baixa, sem contemplar a possibilidade de altas de
juros.
Especificamente, entre janeiro e março os
preços de mercado embutiam dois cortes de juros em 2025 e dois em 2026 (ritmo
de 25 pbs). Apesar de a campanha Trump ter antecipado que ocorreriam drásticas
mudanças na política comercial e migratória depois da posse, os mercados
aparentemente contavam com uma postura menos contenciosa, e reagiram fortemente
ao chamado “Liberation Day”. Com isso, embora o eventual choque de oferta
resultante da alta de tarifas (e restrição à imigração) tenha impacto
inflacionário, o mercado intensificou a expectativa de cortes de juros para de
três e meio cortes em 2025 e quatro e meio cortes em 2026 - ou seja, de um
total aproximado de 100 pbs entre 2025 e 2026 para algo como 200 pbs. Depois do
acordo temporário entre EUA e China, o apreçamento recuou para um total de
cortes próximo a 140 pbs.
Esses cortes de juros implicam a avaliação,
pelo mercado, de que, no momento, o Fed atribui importância bem mais elevada a
conter riscos para a atividade econômica, do que à estabilidade de preços. Uma
interpretação corrente é que a economia viveu um choque de incerteza, que irá
levá-la às portas de uma recessão, que deve ser evitada pela ação do banco
central. Como as expectativas de inflação estão ancoradas e o Fed usufrui de
alta credibilidade, e como o dólar tende a apreciar como consequência da imposição
das tarifas, qualquer repique inflacionário tende a ser limitado e transitório.
Sob esse ponto de vista, o Fed deveria, sim, vir a socorro da atividade
econômica.
Ocorre que as premissas para tal estratégia
são questionáveis. Em primeiro lugar, desde o início da guerra tarifária o
dólar apresenta ligeira depreciação, não apreciação. Os custos de importados
não estão caindo, e os grandes varejistas já sinalizam que implementarão altas
de preços. Isso em um ambiente no qual a inflação ainda não convergiu para a
meta antes do choque de tarifas.
O Fed pode até vir a cortar os juros, mas só
no fim do ano e correndo certo risco quanto as expectativas de inflação
Tão ou mais importante, a ancoragem das
expectativas não pode ser tida como certa. Existem diversas pesquisas sobre
expectativas de inflação nos EUA. Duas das mais eminentes são as realizadas
pela Universidade de Michigan e pelo Fed de Nova Iorque - ambas de âmbito
nacional e focadas em consumidores. Nos últimos trimestres, enquanto as
expectativas capturadas pela pesquisa de Michigan mostram desancoragem, a do NY
Fed ainda parece mostrar expectativas ancoradas.
Estudo recente de eminentes especialistas
sobre o tema indica que, ao contrário da visão prevalente nos mercados, a
pesquisa de Michigan, que mostra desancoragem, é mais apropriada e informativa.
Seus resultados são mais consistentes com o de outras pesquisas, não estão fora
da curva. Mais importante, a pesquisa do NY Fed sofre de importantes
fragilidades conceituais. Quando, utilizando os microdados da pesquisa, os
problemas metodológicos são corrigidos, a pesquisa aponta para resultados não
muito distantes do levantamento de Michigan.
O estudo conclui que as expectativas de
inflação um ano à frente nos EUA estão em 5-6%, bem distante da meta de 2% e
acima do patamar de 3% dessas expectativas no período pré-Covid. A métrica mais
comparável à pesquisa Focus no Brasil, o Survey of Professional Forecasters, do
Fed da Filadélfia, tem uma frequência menor, trimestral, mas também mostra alta
das expectativas em todos os horizontes, inclusive as mais longas de 10 anos à
frente. E isso antes que o pleno impacto das novas tarifas tenha se materializado.
As diferenças entre as pesquisas têm de fato
diminuído, convergindo para um quadro preocupante. Enquanto as expectativas de
1 ano da pesquisa de Nova Iorque estão em 3,6%, as de 3 anos encontram-se em
3,2%. É verdade que as expectativas mais longas, de 5 anos, parecem mais
acomodadas (2,7%). Mas é pouco crível que as expectativas longas sigam
bem-comportadas depois de vários anos de inflação elevada, na ausência de uma
reação (contracionista) da política monetária.
Em resumo: o Fed pode até vir a cortar a taxa
de política monetária, mas será apenas no final do ano e, mesmo assim, correndo
certo risco no que se refere às expectativas de inflação.
*Mario Mesquita é
economista-chefe do Itaú Unibanco.
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