Enquanto isso, o jovem das regiões centrais, herdeiro inconsciente do monopólio narrativo, permanece alheio à riqueza dos dizeres de quem está longe demais das capitais, desconhece completamente as tradições, signos e saberes que são profundamente ricos. Esse desnível não é casual, trazendo para discussão o aspecto transnacional, ele expressa o que Boaventura de Sousa Santos chamou de epistemologias do sul: formas de conhecimento historicamente marginalizadas, silenciadas, apagadas por um sistema-mundo que universalizou a experiência do Norte global como a norma, e a do Sul como exótica, essa vista como subalterna ou folclórica. A força do saber periférico está em seu caráter híbrido e adaptativo: O oprimido precisa compreender mais que o opressor para sobreviver, resistir, resinificar e crescer.
É uma repetição histórica, um ouroboros,
durante os séculos de dominação europeia, os africanos sequestrados e
escravizados precisavam aprender as línguas dos colonizadores, seus gestos,
seus códigos religiosos, sua organização social, sob pena de punição, exclusão
ou morte. Já os senhores brancos, donos das senzalas e das igrejas, em geral
jamais aprenderam os idiomas bantos ou iorubás, os significados dos orixás, os
saberes medicinais ancestrais. Em Angola, Congo, e mesmo no Brasil, o africano
conheceu profundamente a Europa, mas a Europa jamais compreendeu a África.
Essa assimetria ainda é atual, um intelectual
indiano lê Michel Foucault, Judith Butler, Marx e Kant. Mas quantos pensadores
parisienses leram B. R. Ambedkar, Gayatri Spivak ou Vivek Chibber? O estudante
latino-americano reconhece obras de Jürgen Habermas e John Rawls. Mas quantos
alemães já ouviram falar de Aníbal Quijano, Silvia Rivera Cusicanqui ou Paulo
Freire? A divisão internacional do trabalho intelectual permanece colonial: o
Sul conhece o Norte, mas o Norte ainda ignora o Sul, inclusive onde este é
indubitavelmente mais qualificado e teoricamente superior.
É nesse cenário que emerge o conhecimento
estratégico do marginal, não é apenas resistência; pode ser uma leitura
refinada do mundo. Como disse bell hooks, a marginalidade pode ser um local de
radical abertura, um ponto de vista a partir do qual se enxerga o todo,
incluindo o centro, enquanto o centro vê apenas o reflexo de si mesmo, o
periférico é cosmopolita à força, ele vive entre mundos. Um jovem do subúrbio
de Dakar conhece com desenvoltura a culinária, programas de TV e música
francesa, e ainda é capaz de recitar inúmeros trechos do Alcorão. Um morador do
sertão do nordeste conhece a letra inteira de um funk carioca, mas também os
usos do extrato de umbuzeiro e como usar a palma na seca para alimentar os
animais. Um indígena brasileiro decodifica as instituições ocidentais para
conseguir demarcar sua terra, ao mesmo tempo em que preserva a cosmologia
ancestral de seu povo. São todos transfugas da fronteira, por imposição
perversa da latitude e longitude do local do seu nascimento.
Esses sujeitos acumulam, portanto, um capital
simbólico ampliado, eles não apenas detêm seus saberes originários, mas também
dominam com lucidez crítica os códigos hegemônicos, são intérpretes
multiculturais. No entanto, sua erudição popular, seu conhecimento prático, sua
leitura dupla do mundo, não são valorizados pelas instituições e academias.
Isso revela o quanto a modernidade continua presa à estrutura colonial que a
fundou: só reconhece como universal aquilo que nasce no centro, e normalmente
só repara a borda quando o próprio centro observa algum valor por lá.
A escritora portuguesa de pais africanos,
Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, mostra como o saber do
colonizado é constantemente deslegitimado e expulso do território do
pensamento. Quando o negro, o indígena, o pobre ou o migrante fala, muitas
vezes não é escutado, ou é ouvido como “experiência” e não como “teoria”. O
saber das margens é tolerado como curiosidade, mas raramente aceito como
epistemologia válida.
Esse fenômeno é reproduzido também na mídia,
nas artes, moda, cinema, na política institucional, em tudo. Quantas vezes as
gírias das periferias viram moda nos centros urbanos sem o devido crédito ou
contexto? Quantas vezes expressões de resistência estética são apropriadas sem
reverência às suas origens? A periferia fornece o ritmo, o sabor, a cor, a
magia, o conhecimento, mas não o poder de nomear ou conduzir.
Contudo, há fissuras nessa hegemonia, a
circulação digital e midiática tem provocado em parte uma reconfiguração desse
jogo. A democratização da internet tem exposto jovens periféricos a múltiplos
universos culturais e, ao mesmo tempo, projetado suas linguagens para além do
gueto e diminuindo as fronteiras. Coletivos de comunicação popular, lideranças
indígenas e quilombolas, escritores das periferias, rappers e poetas,
grafiteiros, estão transformando sua vivência em narrativa política, estética e
pedagógica. Nunca tantos marginalizados souberam tanto sobre tantas realidades
de tantos outros marginais. Porém, o centro pouco se move, assim, o peso da
desigualdade epistemológica persiste.
Para nós do Sul Global, é exigido um
repertório duplo, por vezes triplo: o sujeito periférico precisa dominar seu
contexto local, interpretar os códigos do centro e se orientar num mundo
globalizado em constante mutação, é um malabarismo existencial. Mas também vira
uma capacidade potencial, essa plasticidade de leitura, essa fluência entre
mundos, é um dom de quem se acostumou a caminhar sobre terrenos instáveis,
transforma essa pessoa em alguém que pode analisar o micro e ainda compreender
perfeitamente o macro.
Nesse sentido, a figura do oprimido é tudo
menos passiva, sabe quando traduzir e quando deixar que o centro se perca na
própria ignorância, sabe entrar em espaços onde sua presença é questionada e,
mesmo assim, ocupar com dignidade e crítica. A capacidade de viver entre
códigos, de habitar simultaneamente o mundo do colonizador e o da resistência,
é um atributo de profunda complexidade intelectual. Não devemos romantizar a
situação, mas compreender a força que advém da escassez.
Refletir sobre esse fenômeno é também
repensar as bases de um novo pacto civilizatório, o saber do marginalizado
precisa deixar de ser apenas um instrumento de sobrevivência para se tornar um
ponto de partida, aquele que conhece a si mesmo e ao outro está mais apto a
propor sínteses, mediações, recomeços. O mundo que queremos talvez esteja mais
próximo da escuta das periferias do mundo do que da repetição estéril do centro
dominante.
Como disse Frantz Fanon, "o colonizado é
um homem enredado em dois mundos". Mas esse entrelaçamento, longe de ser
um fardo, pode ser uma chave para uma nova concepção de humanidade: múltipla,
fluente, inclusiva, atenta às bordas. Uma humanidade em que saber mais não seja
privilégio, mas reconhecimento, quem sabe um mundo sem centros únicos, em que
cada ponto do que hoje vemos como margem seja o nascedouro de um novo centro
que entre em confluências com outros tantos centros mais, até que não haja mais
necessidade nenhuma de centralizar.
Essa transformação exige uma ética da escuta,
que os centros se abram a silêncios longamente impostos, que o conhecimento
deixe de ser um privilégio geográfico e passe a ser uma partilha comprometida.
Que o currículo, universidades, bibliotecas, museus, parlamentos e as redações
acolham vozes até então secundarizadas, não como ato de caridade, mas como
reparação histórica e reinvenção do comum, pela beleza da busca de conhecimento
mais pleno, porque, como vimos, o saber do oprimido não é menor, ao contrário,
é muito mais vasto, pois abarca um conhecimento incontabilizável, o do seu
mundo e o do dele.
*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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