Valor Econômico
Tão ou mais preocupante que a IA na eleição
argentina, é a direita tradicional ser engolida por Milei
Candidatos pró-Europa venceram na Polônia e
na Romênia derrotando, como aconteceu recentemente no Canadá e na Austrália, os
candidatos alinhados a Donald Trump. A extrema-direita avançou em Portugal, mas
os conservadores e a esquerda ainda mantêm a capacidade de isolá-la. Foi na
Argentina que a rodada eleitoral do fim de semana acendeu o sinal de alerta
para o Brasil - pela manipulação via inteligência artificial de um vídeo na
véspera da votação mas, principalmente, pela capitulação da direita tradicional
(Maurício Macri) ante o presidente Javier Milei.
Até que saísse o resultado das eleições legislativas em Buenos Aires, o ex-presidente centrou fogo no vídeo em que aparece pedindo voto para o candidato de Milei (Miguel Adorni) em detrimento da sua candidata (Silvia Lospennato) como única alternativa contra o peronismo. O vídeo traz Macri, que engole as palavras, num tom monocórdico, com olhos, boca e cabeça cadenciados. A evidência de que se trata de uma imagem robótica não fica clara para quem assiste ao vídeo no celular, por onde circulou, graças às redes sociais.
No dia seguinte, o partido de Macri perdeu,
pela primeira vez em 20 anos, o domínio sobre Buenos Aires. Indagado sobre o
vídeo, Milei afirmou tê-lo recebido de um jornalista enquanto cuidava de
enchentes país afora. Acusou Macri de não saber lidar com redes sociais e, por
isso, não ser capaz de identificar a falsificação grosseira. Depois de ter
esbravejado contra o vídeo, chamando-o de coisa de “loucos”, foi num tom de
capitulação que Macri acabou por reconhecer a derrota de sua candidata.
Não é a primeira eleição na Argentina em que
se faz uso de inteligência artificial. A disputa que consagrou a vitória de
Milei já se fartou de seus recursos. A liberalidade é tamanha que o vídeo
continuava no ar 24 horas depois de finda a votação.
Não há uma vacina 100% eficaz contra a força
da IA nas campanhas. Uma marca d’água nos vídeos de autoridades já foi
proposta, inclusive, para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os candidatos
podem vir a fazer sua própria marca d’água, ainda que não seja garantido que o
eleitor venha a distingui-la. Propostas como esta também já foram feitas ao
projeto de lei que circula no Congresso para regulamentar a inteligência
artificial. Como, de resto, toda a pauta parlamentar, este projeto também está
parado.
A tendência de vitória de Milei já havia
aparecido na última semana. O vídeo a consolidou. O fator Trump, que tanto
pesou no Hemisfério Norte, não deu as cartas no Cone Sul, onde Milei é seu
aliado preferencial. O resultado na capital, que pode contaminar a eleição
provincial, está associado à imagem de Milei e de seu porta-voz, escolhido como
candidato.
Beto Vasques já trabalhou em campanhas
eleitorais na Espanha, na Argentina e no Brasil e hoje dirige o Instituto
Democracia em Xeque e é professor da Escola de Sociologia e Política de São
Paulo. Se, na Espanha, não enxerga, por ora, ameaça à direita tradicional por
parte de um Vox que não tem um único governador, cá embaixo vê os dois vizinhos
em sincronia.
A despeito da tentativa de golpe escancarada
que colocou o ex-presidente a caminho da condenação, Jair Bolsonaro mantém
força suficiente para que todos os governadores que são pré-candidatos à
sucessão presidencial lhe beijem as mãos com promessa de anistia se eleitos.
Não é exatamente o que Bolsonaro gostaria. Preferia que contestassem sua
inelegibilidade, mas o movimento, na percepção de Vasques, sinaliza a
extrema-direita como vetor.
Se, no Brasil, o fortalecimento de que
desfruta Milei não pode ser replicado por Bolsonaro, seja por que o
ex-presidente já não dispõe de maioria, seja por que está impedido de disputar
eleições, não dá para negar que sua força gravitacional é capaz de manter todo
o espectro da direita brasileira no seu entorno.
A resiliência da extrema-direita no Brasil
não se restringe aos movimentos de suas lideranças. Está espraiada, por
exemplo, na mentalidade de influenciadores associados à indústria de apostas e
daqueles que disputam na justiça a guarda de bonecas que mimetizam o
comportamento humano.
Mal saem da CPI das Bets, os influenciadores
retomam o mesmo escracho sobre a desgraça alheia, agora alavancada pelos
seguidores que adquiriram durante sessões de lacração no Congresso. Mimetizam o
ex-ministro da Fazenda. “Aquilo ali num atrapalha ninguém. O presidente fala em
liberdade. Deixa cada um se f...do jeito que quiser. Principalmente se o cara é
maior, vacinado e bilionário”, disse Paulo Guedes na fatídica reunião
ministerial de maio de 2020.
Já os bebês “reborn” não param de ganhar
projetos de lei. Os textos abrem brechas, por exemplo, para que as mães das
bonecas ganhem atendimento no Sistema Único de Saúde se ficar evidenciado que o
apego se deve a um déficit psicossocial.
O fenômeno que se espraia no país leva ao
limite a visão da extrema-direita americana sobre a conceito teológico da
“ordem do amor” contra o qual se insurgiu Robert Prevost antes de sua escolha
para o Vaticano. A família, que deve ter precedência sobre vizinhos,
comunidade, compatriotas e o resto do mundo, é aquela sobre a qual se tem
controle absoluto.
Basta olhar para o lado. Não falta infância
de verdade a ser protegida. Nos últimos quatro anos, as denúncias de abuso e
exploração sexual contra crianças e adolescentes cresceu 195%, segundo o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública.
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