“Eu de gravata e Mujica com seu jeito chacareiro tivemos espírito de união”
Manoella Smith / Folha de S. Paulo
Primeiro presidente da redemocratização
comenta relação com seu opositor e relembra como foram de 'inimigos' a 'colegas
amistosos' em defesa do debate democrático
Personagem chave no processo de
redemocratização do Uruguai, o
ex-presidente Julio
María Sanguinetti não esconde o respeito que nutre por José
"Pepe" Mujica, que
morreu na semana passada, aos 89 anos, após meses de tratamento contra
um câncer
de esôfago.
Apesar de serem opositores políticos —um,
ícone da esquerda, e o outro, estrela da direita—, Sanguinetti diz que passaram
"a ser colegas amistosos" e que trabalharam "pela reconciliação
nacional".
"Pepe foi criticado: ‘O que você faz com
esse burguês do Sanguinetti?.’ E a mim me diziam: ‘O que você faz com esse
velho tupamaro?’. E eu respondia o mesmo a todos: ‘Senhores, queremos a paz ou
não? A paz se faz entre adversários, não com seus próprios", afirma
Sanguinetti em entrevista por videoconferência na sexta-feira (16), dias após a
morte de Mujica.
Membro do tradicional Partido Colorado, ele
governou o Uruguai em duas ocasiões: na primeira, de 1985 a 1990, encerrou um
ciclo de 12 anos de governos autoritários. Depois, retornou ao cargo entre 1995
e 2000.
Já Mujica, ex-guerrilheiro, ajudou a criar o
MPP (Movimento de Participação Popular), a força com mais congressistas dentro
da Frente Ampla. Foi eleito deputado em 1995 e ocupou a Presidência entre 2010
e 2015.
À coluna, Sanguinetti relembra seu último encontro com Mujica, em março, durante um evento realizado na casa do Partido Colorado, em Montevidéu, em comemoração aos 40 anos da democracia. Diz que um dos maiores legados do esquerdista é o de "se transformar e se retificar" e comenta bastidores da decisão de renunciarem em conjunto ao Senado em 2020.
Vimos uma grande
comoção em torno da morte de Pepe Mujica. Quais valores o senhor
acredita que Mujica encarnou que o tornaram tão popular?
A figura de Mujica foi muito peculiar no
nosso país. Eu, pessoalmente, passei com ele por todas as etapas que se pode
passar em um relacionamento pessoal e político.
Primeiro, sem nos conhecermos, éramos
inimigos. Eles [os
Tupamaros, grupo guerrilheiro do qual Mujica fez parte] fizeram uma guerra
civil, uma revolução armada muito dramática.
Depois, eles [guerrilheiros] foram presos e
veio a ditadura militar (1973–1985). E a ditadura, naturalmente, nos colocou do
mesmo lado, do lado da liberdade. E eles que haviam entrado na prisão, eu diria
que muito censurados pela opinião pública, saíram ao contrário, com outra
visão.
E aí vem o segundo Mujica, digamos, o
político. Fomos competidores. No ano 1995 ele se tornou deputado. Foi algo
extravagante, porque ele aparece na Câmara dos Deputados em uma vespa, de jeans
e jaqueta. Naquela época não se usava essa vestimenta informal.
Meu primeiro contato com Mujica foi em 1º de
março de 1995, na cerimônia de posse do meu segundo período presidencial. Ele,
na bancada parlamentar, me olha ao passar e diz: "Estamos com você,
presidente".
Acredito que ao final esse é o maior legado
que ele deixa. Sua capacidade de se transformar, de retificação. Ou seja, a
capacidade de mudar. De passar daquela etapa revolucionária a uma etapa
pacificadora, integradora.
Tivemos em particular uma grande aproximação.
Passamos a ser colegas amistosos e trabalhamos pela reconciliação nacional.
Estivemos juntos no Senado e nos aposentamos juntos.
Essa era uma pergunta que eu queria fazer. Em
2020, vocês dois eram senadores e decidiram renunciar em conjunto. Como
chegaram a esse acordo e por que fazer isso ao mesmo tempo? Havia uma mensagem
que queria passar?
Uma certa tarde eu estava no Senado, em uma
comissão com Lucía
[Topolansky, mulher de Mujica], que era senadora também. Comentei que
pensava em renunciar. E então Lucía me diz: 'Pepe também quer renunciar porque,
com a pandemia, ele quer ir embora'. E aí surge a ideia. Mujica concordou e
fizemos uma sessão especial, uma cerimônia de despedida.
Já era incomum que houvesse dois
ex-presidentes no Senado. E que saíssemos juntos era algo particular, especial.
E o fizemos deliberadamente como uma mensagem à juventude.
Queríamos demonstrar como pessoas com
histórias distintas, que tiveram seus enfrentamentos, sabem buscar a paz.
Democracia é diálogo. E o diálogo sempre deve ser preservado perante as
instituições republicanas.
Depois inclusive se fez um livro de diálogo
["O Horizonte: Conversas sem Ruído Entre Sanguinetti e Mujica"] de
dois jornalistas colegas, Alejandro Ferreiro e Gabriel Pereyra. Nós fomos
apresentá-lo em Buenos Aires.
Lá, éramos vistos como uma espécie de
dinossauros, uma estranha espécie em extinção em um país de política tão
confrontadora como a Argentina.
Dois presidentes com histórias tão diferentes, com aspectos tão diferentes, eu
sempre com minhas gravatas e ele sempre com seu aspecto de chacareiro, mas de
algum modo marcados por esse espírito de unidade.
A imagem de vocês se abraçando [na saída do
Senado] se tornou um símbolo de diálogo democrático e republicano. O sr. vê a
política mais polarizada hoje em dia? Ou acredita que o Uruguai é um lugar de
menos embate na comparação com países vizinhos como a Argentina e o Brasil?
Hoje, o conceito de representação se
enfraqueceu por uma combinação de fatores. As redes [sociais] que fazem o
cidadão viver a ilusão de participar do debate de modo individual, sem
intermediários, as insatisfações de um emprego muito mais instável, os fatores
vinculados ao consumismo etc.
As opções intermediárias vão perdendo peso
frente às posições extremas de direita ou de esquerda. Hoje os populistas
também são de direita. Quando falamos de populista falamos de líderes
messiânicos, demagógicos, que estão além das instituições. Isso se vê na
Europa, na América
Latina.
O Uruguai felizmente mantém suas instituições
firmes e seus partidos em coalizão. Há uma coalizão de esquerda, há uma
coalizão de centro e não há direita extrema no Uruguai, felizmente, nem hoje
tampouco uma esquerda revolucionária. Então acredito que isso sim nos dá
estabilidade.
O último ato [público] de Mujica foi em 27 de
março.
Na sede do Partido Colorado, correto?
Na casa do Partido Colorado, algo inédito, uma reunião com o presidente da
República [Yamandú Orsi] e
todos os ex-presidentes para celebrar os 40 anos do retorno democrático. Foi
muito emocionante a presença de Mujica. Era muito clara sua situação de saúde.
Qual você acredita que será o impacto da morte de Mujica para a esquerda uruguaia?
Acredito que ele passa a ser uma referência histórica. A Frente Ampla já hoje é
um partido tradicional. Já começa a ter uma iconografia. Líber Seregni como
fundador, depois Tabaré Vázquez como o primeiro [membro da sigla] a chegar à
Presidência da República. E então Mujica, que significa justamente a
pacificação, a transformação da etapa revolucionária para a democracia liberal.
O senhor falou do crescimento do populismo, tanto à direita quanto à esquerda. Queria perguntar sobre como o senhor vê os atuais da direita, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e da Argentina, Javier Milei?
O fenômeno populista não é uma ideologia. É um método no qual um líder
messiânico faz um uso abusivo das instituições do Estado para constituir ou
perpetuar-se no poder.
A grande curiosidade é que agora apareceram
esses demagogos fortes à direita. Antes não era comum, porque o populismo
normalmente era de esquerda. Como Chávez, para dar um nome, na Venezuela. Um
emblemático populista que acabou em uma ditadura permanente.
No caso dos de direita, como Trump ou Milei,
é diferente no sentido de que eles estão dentro da institucionalidade
democrática. Embora atuem com um critério, digamos, demagógico, que às vezes
caminha para o abuso da institucionalidade, acabam se atendo a isso. Ou seja,
não há uma proposta revolucionária no sentido clássico.
Acredito que Milei vai deixar a Argentina, se
culminar com êxito seu esforço econômico, um país mais estável, mas uma
política mais crispada, de rachadura, de enfrentamento. Ele representa essas
duas coisas.
Por um lado, uma ordem econômica maior e por
outro lado um ataque frenético a todo o resto, aos partidos que ele chama de
casta política, ao jornalismo etc.
Ainda no tema da América Latina, o sr. defende uma flexibilização do Mercosul? Acredita que esse é o caminho?
O Mercosul não nasceu como uma nova força protecionista, mas como uma
plataforma de lançamento para o mundo. É verdade que hoje a situação mudou
porque os Estados Unidos passaram de líder da liberdade comercial para líder
do protecionismo. Um retrocesso muito forte da marca Trump.
Pessoalmente, continuo acreditando que o
Mercosul precisa ser mais flexível. Agora, vem uma pergunta: "Esse
protecionismo de Trump veio para ficar ou passará?." Não sabemos. Quero
pensar que passa e que depois vamos retornar novamente a um comércio mais
livre.
Ao longo dos anos, o senhor e o ex-presidente Mujica trilharam caminhos distintos, mas compartilharam espaços-chave na política. E desenvolveram uma relação de proximidade. Queria perguntar se há uma anedota ou momento com Mujica que marcou ou que guarda com especial afeto.
Estive com Mujica em muitos momentos e em muitas instâncias, mas creio que a
mais importante é a última, quando poucas semanas antes de morrer fizemos esse
grande ato na casa do nosso partido. E a última grande intervenção pública. É
uma intervenção conciliadora, pacifista, com uma visão histórica. É a última
imagem [que tenho dele] e o último abraço também.
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