domingo, 6 de julho de 2025

A negação ativa do horror - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

É um mecanismo de defesa, individual ou coletivo, em geral por cinismo ou perturbação mental profunda

Negação ativa é o que ocorre quando diante de um fato claro e simples, uma evidência, o sujeito finge que não vê, para aplacar a consciência. É um mecanismo de defesa, individual ou coletivo, em geral por cinismo ou perturbação mental profunda. Aplica-se bem à indiferença generalizada a uma postagem do famoso produtor de televisão israelense Elad Barashi: "Não consigo entender as pessoas aqui no Estado de Israel que não querem encher Gaza com chuveiros de gás... ou vagões de trem... e acabar com essa história! Que haja um Holocausto em Gaza!" (5/5/2025).

"O horror, o horror", balbuciaria o atormentado Kurtz de "Coração das Trevas" (Joseph Conrad). Mas houve reação da mídia internacional à gravidade dessa linguagem. Embora muitos cidadãos israelenses reajam a isso, os círculos oficiais não criticaram os comentários de Barashi, que pertence à TV Canal 14, porta-voz de ultradireita do premier Netanyahu. Entre nós, o destaque ao fato deveu-se apenas à forte voz semanal da jornalista Dorrit Harazim.

Tão grave quanto naturalizar o horror é a negação ativa por parte de vozes públicas. Disso não está isenta a grande imprensa, focada na "objetividade" da contagem dos mortos na represália da máquina de morte de Netanyahu ao pogrom terrorista do Hamas.

Entre nós, um paralelo chocante é a espetacularização jornalística da Marcha para Jesus, em que o governador e o prefeito de São Paulo desfilaram enrolados nas bandeiras de Israel. Aos leigos em religião, muitos, cabem dúvidas sobre a pertinência desse estandarte no evento. O judaísmo não cultua Jesus, e deve ter havido confusão entre israelenses e os hebreus das Escrituras. Mesmo esses não tinham Jesus nem bandeira, muito menos aquela que a polícia remove à força dos bairros da zona norte do Rio agrupados por traficantes como Complexo de Israel, onde matadores formam o Bonde de Jesus.

Não se trata da mesma divindade venerável da Hebreia. A menos que as identificações remontem às passagens do Velho Testamento, em que o combativo Davi, divina escolha para governar a nação de Israel e Judá, se mostrava crudelíssimo para com os inimigos, filisteus ou amalequitas, quase todos exterminados, mulheres, crianças até o gado. Nesse caso, a inflexibilidade bíblica explica a retórica genocida de Barashi: "Gaza merece a morte. Os 2,6 milhões de terroristas em Gaza merecem a morte! Homens, mulheres e crianças, de todas as formas possíveis (...) Sem medo, sem hesitação, simplesmente espatifar, erradicar, massacrar, demolir, desmoronar, esmagar, estilhaçar". Edward Said, o grande intelectual da causa palestina, se espantaria: ele reconhecia e abominava a Shoah, o holocausto dos judeus.

Esse terror passa ao largo do pacifismo da marcha. Mas por que marchar, perguntaria o leigo, se Jesus caminhava a passos crísticos com seus seguidores? Sem resposta cívico-militar: o argumento impositivo seriam os 590 milhões injetados no comércio pelo evento, na mesma semana do aumento das isenções tributárias às igrejas. Algo contraposto ao Evangelho (Lucas, 6:13), de que não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e a Mamon (demônio bíblico das finanças). Disso não sabe ou esqueceu o governador em sua retórica teocrática. Aliás, também esqueceu em casa o boné de Trump.

 

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