Folha de S. Paulo
É um mecanismo de defesa, individual ou
coletivo, em geral por cinismo ou perturbação mental profunda
Negação ativa é o que ocorre quando diante de um fato claro e simples, uma evidência, o sujeito finge que não vê, para aplacar a consciência. É um mecanismo de defesa, individual ou coletivo, em geral por cinismo ou perturbação mental profunda. Aplica-se bem à indiferença generalizada a uma postagem do famoso produtor de televisão israelense Elad Barashi: "Não consigo entender as pessoas aqui no Estado de Israel que não querem encher Gaza com chuveiros de gás... ou vagões de trem... e acabar com essa história! Que haja um Holocausto em Gaza!" (5/5/2025).
"O horror, o horror", balbuciaria o
atormentado Kurtz de "Coração das Trevas" (Joseph Conrad). Mas houve
reação da mídia internacional à gravidade dessa linguagem. Embora muitos
cidadãos israelenses reajam a isso, os círculos oficiais não criticaram os
comentários de Barashi, que pertence à TV Canal 14, porta-voz de ultradireita
do premier Netanyahu. Entre nós, o destaque ao fato deveu-se
apenas à forte voz semanal da jornalista Dorrit Harazim.
Tão grave quanto naturalizar o horror é a
negação ativa por parte de vozes públicas. Disso não está isenta a grande
imprensa, focada na "objetividade" da contagem dos mortos na
represália da máquina de morte de Netanyahu ao pogrom terrorista do Hamas.
Entre nós, um paralelo chocante é a
espetacularização jornalística da Marcha para Jesus, em que o
governador e o prefeito de São Paulo desfilaram enrolados nas bandeiras de Israel. Aos leigos em
religião, muitos, cabem dúvidas sobre a pertinência desse estandarte no evento.
O judaísmo não cultua Jesus, e deve ter havido confusão
entre israelenses e os hebreus das Escrituras. Mesmo esses não tinham Jesus nem
bandeira, muito menos aquela que a polícia remove à força dos bairros da zona
norte do Rio agrupados por traficantes como Complexo de Israel, onde matadores
formam o Bonde de Jesus.
Não se trata da mesma divindade venerável da
Hebreia. A menos que as identificações remontem às passagens do Velho
Testamento, em que o combativo Davi, divina escolha para governar a nação de
Israel e Judá, se mostrava crudelíssimo para com os inimigos, filisteus ou
amalequitas, quase todos exterminados, mulheres, crianças até o gado. Nesse
caso, a inflexibilidade bíblica explica a retórica genocida de Barashi:
"Gaza merece a morte. Os 2,6 milhões de terroristas em Gaza merecem a
morte! Homens, mulheres e crianças, de todas as formas possíveis (...) Sem
medo, sem hesitação, simplesmente espatifar, erradicar, massacrar, demolir,
desmoronar, esmagar, estilhaçar". Edward Said, o grande intelectual da
causa palestina,
se espantaria: ele reconhecia e abominava a Shoah, o holocausto dos judeus.
Esse terror passa ao largo do pacifismo da
marcha. Mas por que marchar, perguntaria o leigo, se Jesus caminhava a passos
crísticos com seus seguidores? Sem resposta cívico-militar: o argumento
impositivo seriam os 590 milhões injetados no comércio pelo evento, na mesma
semana do aumento das isenções tributárias às igrejas. Algo contraposto ao
Evangelho (Lucas, 6:13), de que não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e a
Mamon (demônio bíblico das finanças). Disso não sabe ou esqueceu o governador
em sua retórica teocrática. Aliás, também esqueceu em casa o boné de Trump.
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