domingo, 6 de julho de 2025

O esporte sem grandeza de Trump – Dorrit Harazim

O Globo

O presidente prefere a pancadaria crua de uma luta de MMA, é incapaz de compreender essência do esporte olímpico

Se há um espécime humano incapaz de compreender a essência do esporte olímpico, ou ver grandeza no esporte em geral, esse espécime se chama Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos prefere a pancadaria crua de uma luta de MMA, a que assiste presencialmente na boca do octógono. Fora isso, só mesmo a prática do golfe — e, mesmo assim, apenas num dos 15 clubes e resorts de sua propriedade (11 nos Estados Unidos, dois na Escócia, um na Irlanda, um nos Emirados Árabes — e algum dia, quem sabe, sonhe com um em Gaza?), onde é de bom-tom dos convidados deixá-lo ganhar. A ideia de competir sem vencer lhe é existencialmente indigesta. A ponto de, em 2018, ainda no primeiro mandato, referir-se aos soldados americanos tombados na Primeira Guerra e enterrados no cemitério francês de Aisne-Marne como “otários e perdedores”. Dificilmente teria tido empatia pelo maratonista John Stephen Akhwari, da Tanzânia, que na Olimpíada de 1968, no México, celebrou cruzar a linha de chegada em último lugar, mais de uma hora depois do vencedor. Questionado por que não desistira da prova quando sofreu uma queda e deslocou o joelho, Akhwari respondeu com naturalidade:

— Meu país não me enviou de 8 mil quilômetros de distância para começar a corrida; me mandaram até aqui para terminar a corrida.

Pois quiseram o destino e o calendário esportivo fazer desse presidente viciado em Big Macs e Coca-Cola o anfitrião da Copa do Mundo, no próximo ano, e da Olimpíada de Los Angeles, em 2028. Os primeiros sinais de incompatibilidade entre esses megaeventos de afluência global e seu combate à “invasão de nossas fronteiras” já vão se fazendo sentir. Por um excesso de zelo colateral ao decreto que proíbe a entrada nos Estados Unidos de cidadãos de 12 países e impõe restrições parciais a sete outros (entre os quais Cuba), o mesa-tenista brasileiro Hugo Calderano se viu proibido de viajar para os Estados Unidos a tempo de disputar a importante competição desta semana, o WTT Grand Smash.

Justo Calderano, caramba, que tem dado tantas alegrias ao Brasil num esporte em que a China reina absoluta. A bordo de um passaporte português, o mesa-tenista brasileiro se vale das facilidades oferecidas a cidadãos da União Europeia (UE) quando viaja, inclusive para os Estados Unidos. Em 2023 disputou um Pan-Americano em Cuba, conseguindo ali a vaga para a Olimpíada de Paris, e dela saiu em inédito quarto lugar. Desde então, só vem empilhando sucessos. Terceiro lugar no ranking mundial, é o único atleta não asiático entre os cinco melhores do planeta. Sua recente vitória na Copa do Mundo de 2025 sobre o até então imbatível Lin Shidong foi um estrondo. No mês passado, pôde comemorar os 29 anos levando pela segunda vez o WTT na Eslovênia e pretendia nova conquista agora em Las Vegas.

Minuciosa, sofrida e rigorosa, a preparação de um atleta de alto rendimento para uma competição permite poucos imprevistos. Um empecilho de última hora, então, é desconcertante. No caso, sua inócua viagem a Cuba levou algum burocrata übertrumpista a ver vermelho (no caso, vermelho de comunista) e a dificultar sua entrada automática em solo americano. Até ele obter a retificação do erro já não havia mais tempo de competir em Vegas.

O episódio pode ser o prenúncio de confusões futuras. Em princípio, os decretos de Trump vetando a entrada de cidadãos de determinados países também contemplam exceções para atletas e equipes participantes dos grandes eventos. Mas a própria sanha com que o governo tem procurado cumprir a meta de 3 mil deportações por dia, somada ao orçamento recém-aprovado de US$ 150 bilhões para políticas de imigração e segurança da fronteira, pode levar pequenos burocratas a valorizar seus pequenos poderes e a multiplicar confusões. Difícil prever o estado do país de Trump em seu último ano de mandato, quando hordas de turistas e olímpicos descerão sobre Los Angeles. Vale lembrar que os Jogos de Seul foram decisivos para a abertura do regime sul-coreano em 1988. E que a Olimpíada de Moscou em 1980 permitiu uma primeira espiada no regime soviético até então blindado por Leonid Brejnev.

Por ora, o olimpismo que Donald Trump mais incentiva atende pelo nome de Enhanced Games (jogos turbinados, em tradução livre). Estão programados para maio de 2026, serão disputados em Las Vegas com patrocínio de um fundo de capital de risco capitaneado por Donald Jr. e já contam com mais de cem atletas inscritos nas três modalidades programadas: natação, atletismo e levantamento de peso. A novidade dessa “Olimpíada do século XXI” é que os participantes competirão turbinados por tudo o que o doping tem de mais moderno. Tudo o que é proibido pelo COI estará liberado. As premiações já anunciadas incluem um bônus de US$ 1 milhão para quem quebrar o recorde mundial na prova de 100 metros e 50 metros nado livre.

— Nosso negócio está em destravar o potencial humano. Estamos criando a vanguarda da super-humanidade — diz o fundador da ideia, o australiano Aron D’Souza.

Os jogos juntam fraude, tudo por dinheiro e violência (contra o corpo humano), as práticas preferidas de Donald Trump.

 

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