O Globo
O presidente prefere a pancadaria crua de uma
luta de MMA, é incapaz de compreender essência do esporte olímpico
Se há um espécime humano incapaz de compreender a essência do esporte olímpico, ou ver grandeza no esporte em geral, esse espécime se chama Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos prefere a pancadaria crua de uma luta de MMA, a que assiste presencialmente na boca do octógono. Fora isso, só mesmo a prática do golfe — e, mesmo assim, apenas num dos 15 clubes e resorts de sua propriedade (11 nos Estados Unidos, dois na Escócia, um na Irlanda, um nos Emirados Árabes — e algum dia, quem sabe, sonhe com um em Gaza?), onde é de bom-tom dos convidados deixá-lo ganhar. A ideia de competir sem vencer lhe é existencialmente indigesta. A ponto de, em 2018, ainda no primeiro mandato, referir-se aos soldados americanos tombados na Primeira Guerra e enterrados no cemitério francês de Aisne-Marne como “otários e perdedores”. Dificilmente teria tido empatia pelo maratonista John Stephen Akhwari, da Tanzânia, que na Olimpíada de 1968, no México, celebrou cruzar a linha de chegada em último lugar, mais de uma hora depois do vencedor. Questionado por que não desistira da prova quando sofreu uma queda e deslocou o joelho, Akhwari respondeu com naturalidade:
— Meu país não me enviou de 8 mil quilômetros
de distância para começar a corrida; me mandaram até aqui para terminar a
corrida.
Pois quiseram o destino e o calendário
esportivo fazer desse presidente viciado em Big Macs e Coca-Cola o anfitrião da
Copa do Mundo, no próximo ano, e da Olimpíada de Los Angeles, em 2028. Os
primeiros sinais de incompatibilidade entre esses megaeventos de afluência
global e seu combate à “invasão de nossas fronteiras” já vão se fazendo sentir.
Por um excesso de zelo colateral ao decreto que proíbe a entrada nos Estados
Unidos de cidadãos de 12 países e impõe restrições parciais a sete outros
(entre os quais Cuba), o mesa-tenista brasileiro Hugo Calderano se
viu proibido de viajar para os Estados Unidos a tempo de disputar a importante
competição desta semana, o WTT Grand Smash.
Justo Calderano, caramba, que tem dado tantas
alegrias ao Brasil num esporte em que a China reina absoluta. A bordo de um
passaporte português, o mesa-tenista brasileiro se vale das facilidades
oferecidas a cidadãos da União Europeia (UE) quando viaja, inclusive para os
Estados Unidos. Em 2023 disputou um Pan-Americano em Cuba, conseguindo ali a
vaga para a Olimpíada de Paris, e dela saiu em inédito quarto lugar. Desde
então, só vem empilhando sucessos. Terceiro lugar no ranking mundial, é o único
atleta não asiático entre os cinco melhores do planeta. Sua recente vitória na
Copa do Mundo de 2025 sobre o até então imbatível Lin Shidong foi um estrondo.
No mês passado, pôde comemorar os 29 anos levando pela segunda vez o WTT na
Eslovênia e pretendia nova conquista agora em Las Vegas.
Minuciosa, sofrida e rigorosa, a preparação
de um atleta de alto rendimento para uma competição permite poucos imprevistos.
Um empecilho de última hora, então, é desconcertante. No caso, sua inócua
viagem a Cuba levou algum burocrata übertrumpista a ver vermelho (no caso,
vermelho de comunista) e a dificultar sua entrada automática em solo americano.
Até ele obter a retificação do erro já não havia mais tempo de competir em
Vegas.
O episódio pode ser o prenúncio de confusões
futuras. Em princípio, os decretos de Trump vetando a entrada de cidadãos de
determinados países também contemplam exceções para atletas e equipes
participantes dos grandes eventos. Mas a própria sanha com que o governo tem
procurado cumprir a meta de 3 mil deportações por dia, somada ao orçamento
recém-aprovado de US$ 150 bilhões para políticas de imigração e segurança da
fronteira, pode levar pequenos burocratas a valorizar seus pequenos poderes e a
multiplicar confusões. Difícil prever o estado do país de Trump em seu último
ano de mandato, quando hordas de turistas e olímpicos descerão sobre Los
Angeles. Vale lembrar que os Jogos de Seul foram
decisivos para a abertura do regime sul-coreano em 1988. E que a Olimpíada
de Moscou em
1980 permitiu uma primeira espiada no regime soviético até então blindado por
Leonid Brejnev.
Por ora, o olimpismo que Donald Trump mais
incentiva atende pelo nome de Enhanced Games (jogos turbinados, em tradução
livre). Estão programados para maio de 2026, serão disputados em Las Vegas com
patrocínio de um fundo de capital de risco capitaneado por Donald Jr. e já
contam com mais de cem atletas inscritos nas três modalidades programadas:
natação, atletismo e levantamento de peso. A novidade dessa “Olimpíada do
século XXI” é que os participantes competirão turbinados por tudo o que o
doping tem de mais moderno. Tudo o que é proibido pelo COI estará liberado. As
premiações já anunciadas incluem um bônus de US$ 1 milhão para quem quebrar o
recorde mundial na prova de 100 metros e 50 metros nado livre.
— Nosso negócio está em destravar o potencial
humano. Estamos criando a vanguarda da super-humanidade — diz o fundador da
ideia, o australiano Aron D’Souza.
Os jogos juntam fraude, tudo por dinheiro e
violência (contra o corpo humano), as práticas preferidas de Donald Trump.
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