domingo, 6 de julho de 2025

O lento avanço da razão sobre as tribos - Claudio de Moura Castro

O Estado de S. Paulo

Qualquer imbecilidade pode virar uma crença grupal, como eram as superstições na Idade Média. E como naquela época, não se sabe lidar com o contraditório

Nos anos mais sombrios da Idade Média, a conformidade era imposta. A Igreja pontificava e todos seguiam. Pensava-se igual, porque apenas isso era admitido. A individualidade era asfixiada. A tribo unida era forçada a pensar unida.

O Renascimento começa a romper essa masmorra intelectual. Os descobrimentos abrem horizontes. O indivíduo floresce. Apesar de acidentes de percurso, podia-se pensar e agir com a própria cabeça.

No Iluminismo, proclama-se o Império da Razão. Chegaríamos mais longe, pensando certo e com rigor. Sob a tutela da razão, as nossas concepções seriam ordenadas e o progresso viria. Que se enxotem os preconceitos e superstições. As emoções e valores tinham que achar os seus lugares, mais modestos.

No último século e tanto, entra em cena a abundância de resultados da pesquisa científica, com seus dados contundentes. No que é observável, ela deveria ter a palavra final. Doenças ou vacinas, a verdade passa a ser definida pelos critérios da ciência.

Avanço definitivo? Nem tanto, as vitórias foram mais modestas do que se esperava. Avançamos, é verdade. Mas o Império da Razão é periclitante. Para muitos, é uma nova moda, rechaçada ou não entendida. Há os que têm um pé nas verdades tribais e outro na razão científica, uma esquizofrenia intelectual.

Com grande consternação, temos que reconhecer os limites nos avanços da razão. Acreditamos no que acreditam as gentes da nossa tribo. Os intelectualmente mais refinados escolhem aqueles fatos e eventos, até verdadeiros, que melhor reforçam as crenças que já tinham. Os outros, nem isso. Lembra-nos Galbraith: “Diante da escolha entre mudar de opinião e provar que isso não é necessário, quase todos se dedicam a demonstrar a segunda opção”.

Façamos um exercício mental – os filósofos chamariam isso de solipsismo. Em sistemas econômicos ou em políticas sociais, será que as opiniões da nossa própria tribo não influenciam escandalosamente o que pensamos? Nossos amigos não pensam como nós? E não lemos os mesmos autores? O que dizem os nossos gurus, não é o que pensamos nós?

Algo começamos a entender, já existe alguma pesquisa nesse assunto. Demonstrou-se que as nossas opiniões e percepções são profundamente influenciadas pelas tribos a que pertencemos. A cartilha do Iluminismo prescreve que a razão nos auxiliaria a formar nossas opiniões. Mas, num número embaraçoso de situações, primeiro vem as crenças que trazemos de nossas tribos. Pespegada por fora, vem o verniz da razão.

Mais iniciativa individual ou mais Estado? Mais liberdade ou mais ordem? Mais autonomia ou a proteção oferecida pelas políticas públicas? Essas proposições estão além do alcance da ciência, são juízos de valor. Mas não fazem sentido no vácuo.

Por exemplo, é legítimo o direito do Estado de obrigar alguém a tomar uma vacina? A ciência nada pode dizer. Todavia, em casos reais, as discussões têm por trás o risco da doença e de seus efeitos colaterais. Conta a eficácia das vacinas, a transmissibilidade da doença e vários outros critérios. Tudo isso é ciência e é indispensável para tomar decisões inteligentes, ainda quando envolvem juízos de valor. Contudo, o que vemos é uma cacofonia de opiniões desencontradas.

As grandes revoluções na tecnologia da informação escancaram, cada vez mais, os dados e os fatos. Tudo está no Google. Porém, tendemos a encontrar nele aquilo que confirma o que já acreditávamos. Os próprios algoritmos do Google já exacerbam uma tal endogenia intelectual, pois na próxima busca virão sites com ideias na mesma linha.

Na Idade Média, todos tinham que pensar igual. Passamos a viver num mundo em que a variedade de gentes e de crenças se multiplicou. Terreno fértil para o Iluminismo.

Porém, nesse particular, a revolução das redes sociais teve um efeito deletério, competindo com seus imensos ganhos. Elas recriaram uma nova Idade Média. Passamos a nos relacionar por meio delas, apenas com gente que pensa igual. Geograficamente, estão hoje todos misturados. Mas, intelectual e emocionalmente, iguais estão conectados com iguais, pelos seus celulares. Que lástima, apesar de utilíssimos. Os celulares se prestam para isso! E quando se encontram os diferentes, não há diálogo produtivo. São “eles” contra “nós”.

O que está dito acima, pelo menos parcialmente, pode explicar a grande polarização política e ideológica dos dias de hoje. As mídias sociais contribuem grandemente para juntar os iguais e dar-lhes confiança e força, por sentirem-se solidamente acompanhados, tenha ou não cabimento o que proclamam. Qualquer imbecilidade pode virar uma crença grupal, como eram as superstições na Idade Média. E como naquela época, não se sabe lidar com o contraditório – que fertiliza as mentes.

Acreditava-se que a Grande Peste resultava da ira dos deuses ou coisa equivalente. Saíam todos em procissão, rezando e pedindo misericórdia. E as pulgas das ratazanas, infectadas, passavam de um devoto para o que estava ao lado. Será que igual não acontece hoje, sendo as pulgas os celulares?

 

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