Mas o conhecimento antecipado do resultado dessa contenda interessa a quem? Parte da parcela politizada do país (aquela parte que iguala politização e engajamento) assegura que o desfecho interessa a todos e de preferência, já. Mesmo que se argumente que Bolsonaro já está virtualmente fora da disputa, essa realidade não é admitida em público pelos engajados em qualquer dos polos. Num deles afirma-se a certeza de que será bolsonarista qualquer candidato da oposição e o outro lado segue crendo, como se viu claramente nos últimos dias, numa reabilitação espúria do seu líder para a disputa, através de uma ingerência infame de Trump. Daí a convicção dos engajados de que o grande efeito do fator Trump é atuar diretamente sobre essa disputa da qual, ao fim e ao cabo, dependeria nosso futuro.
Essa
convicção de alguns tem o poder de mobilizar não apenas as redes sociais, onde
o anonimato é rei, e, com isso, tensionar e estressar políticos e partidos
dependentes de eleitores, também anônimos. A convicção engajada de que o
desfecho dessa pugna é a coisa mais importante para os brasileiros em geral mobiliza
igualmente a imprensa, pela qual respondem nomes e sobrenomes. E também
institutos de pesquisa, que checam a pertinência de tal convicção, consultando
amostras confiáveis do que seriam os “todos”. Essa checagem poderia ser um
antidoto cético benfazejo para conter fábulas ilusionistas e manipulações
inescrupulosas dos sentimentos públicos. Mas não é bem assim que a banda toca.
O
simples fato da consulta – e já se anuncia uma para o meio desta semana -
desperta nas pessoas consultadas o desafio de responder, o que é feito tanto
por quem estava quanto por quem não estava preliminarmente interessado. A
pesquisa, em si um ato despertador, terá resultados que serão divulgados por
meios de comunicação. O cuidado profissional de avisar ao público que são um
retrato do momento - que, no momento seguinte, pode se desfazer - é cuidado
correto, mas inútil. Os engajados não prestarão atenção nele e sim nos números,
seja para alardeá-los, se favorecem ao seu lado, seja para escondê-los ou
questioná-los, no caso oposto. Mas uns e outros terão os números em conta na
sua estratégia política e na multiplicação do engajamento de sua militância, para
ampliá-los ou revertê-los.
Contudo,
há temas políticos mais relevantes em jogo do que o efeito Trump sobre o desfecho
particular desse duelo, aliás, bem comentado, em recente entrevista sobre
renovação política a médio prazo, pelo cientista político Sergio Fausto (Estadão: entrevista a Roseann Kennedy e Zeca Ferreira,
em 13.07.25). Dentre esses temas estão as relações políticas e institucionais
entre Executivo e Legislativo, sobre as quais o tarifaço de Trump pode ter
inesperado efeito desobstrutor de canais de entendimento político.
Vale
aqui lembrar que no último dia 04.07, o ministro Alexandre Moraes, do STF,
suspendeu decretos dos poderes Executivo e Legislativo, que foram mutuamente
acusados de transgredirem a Constituição e o equilíbrio de poderes que ela
prescreve. E marcou, para esta terça-feira, 15.07, uma reunião com
representantes do Governo e do Congresso, em busca de um entendimento, antes
de, na falta deste, exercer o controle concentrado de constitucionalidade, que
a mesma Carta confere ao Poder Judiciário. E vale lembrar certos traços da
cena, pois o tarifaço de Trump praticamente varreu, em poucas horas, da pauta
política pública, esse assunto e seus desdobramentos, como se às muitas
moléstias do momento, viesse se juntar uma espécie de mal de Alzheimer, para
comprometer a memória mais recente dos fatos.
Até
a última quarta-feira, a sociedade política brasileira estava conflagrada em
torno da querela do IOF. O enfrentamento,
com óbvios ingredientes eleitorais, entre os dois poderes, escalou um impasse
político que fez os mais afoitos e apocalípticos atribuírem ao confronto uma
dimensão de crise institucional. Mais do que isso: o lado governista – constrangido
pelas pesquisas que indicavam queda na aprovação do governo e na popularidade
do presidente – reagiu a uma ação agressiva da liderança do Congresso que,
confiada em tais indicadores, imprudentemente atropelou negociações em curso e tentou
emparedar o presidente com um xeque-mate, ao anular, por decreto próprio, o
decreto do Executivo. A reação de Lula e do seu partido foi, deliberadamente,
fazer o conflito transbordar para a sociedade.
Numa
ofensiva comunicacional em que a estratégia do governo e da pré-campanha
eleitoral fundiram-se numa coisa só, presidente e partido acionaram,
diretamente e através de sua militância digital, as redes sociais para venderem
a controvérsia em torno do decreto da Fazenda sobre o IOF como uma luta entre
um presidente e um ministro defensores dos pobres e oprimidos contra um
Congresso reacionário, inimigo do povo e comprometido só com interesses
individuais dos parlamentares e com uma “elite” do andar de cima, que não quer
pagar impostos. Num súbito cavalo de pau discursivo, o que era um decreto de
declarado objetivo arrecadatório do ministério da Fazenda para cumprir o
arcabouço fiscal tornou-se uma cruzada ideológica que chegou a atiçar a memória
do confronto do governo Jango contra as “forças da reação”. Na versão
atualizada, surgia um presidente mais resoluto, que de vítima prometia
converter-se em herói e, como vilões, o Congresso, as elites e seus respectivos
emblemas, o Centrão e a Faria Lima,
Noves
fora a fábula que fez o real conteúdo do decreto submergir e afora também o
anacronismo da polarização ensaiada, é fato que no meio da semana passada o
lado governista já computava ganhos e a cúpula do Congresso já acusava o revés
que sua imprudência imediatista, a mesquinhez e a estreiteza social dos
interesses que a move provocaram. Erroneamente, julgou agonizante um sagaz e
experimentado líder político plenamente decidido a não economizar na retórica
populista. Um político que ainda é capaz de compensar, no curto prazo, seu
indisfarçável declínio no médio prazo e sua falta de visão de futuro para o
país, com um aproveitamento eficaz do erro primário do adversário.
A
nova situação criada não chegava a configurar uma nova correlação de forças,
posto que é fato a dificuldade do governo de lidar com a maioria do Congresso e
também é fato que a desmoralização pública dos oponentes como verdugos do povo
não implica automaticamente no reconhecimento do chefe do governo como seu
defensor. Mas sem dúvida o governo dava um passo na direção de recuperar um
equilíbrio instável pelo qual poderia voltar a 2022 e vender de novo Lula como o
caminho menos pior. Daí que o presidente, diante do chamado do ministro Moraes
aos dois poderes governativos para que assumam sua responsabilidade comum de
produzir governabilidade em vez de impasses, pôde ter espaço para não recuar
tanto quanto teve de fazer a cúpula do Legislativo, visivelmente disposta a
jogar água na fervura que provocou. Recuo tático para alinhar suas forças,
afinal consideráveis, dado o peso do conjunto da direita no Congresso e no
eleitorado. Peso que lhe dava a possibilidade, inclusive, de traçar estratégias
frente a Bolsonaro mais autônomas do que a esquerda pode ter em relação a Lula.
O
anúncio do tarifaço, por Trump, já altera significativamente, não tanto a
disputa eleitoral de 2026, que ainda está relativamente longe, mas as opções de
movimento dos dois poderes e das respectivas facções políticas que os dirigem.
Paradoxalmente (mas também como é habito resultar de impulsos disruptivos do tóxico
presidente norte-americano), o efeito da ameaça de tarifaço inibe movimentos do
comando do Congresso e abre um amplo campo de recomposição política para o
governo.
Ao
escrever uma carta impertinente ao governo brasileiro, previamente publicada em
redes sociais, ao tentar manietar a ação do Poder Judiciário e interferir no
processo eleitoral de 2026, Trump promoveu múltiplas e insólitas agressões aos
mínimos e máximos ritos de respeito na relação entre dois estados soberanos. O
embaixador Rubens Ricúpero, dentre outras respeitáveis vozes, deixou claro, em elucidativa
e magistral entrevista (Band News, Canal Livre em 13.07.25), que essa
conduta descarta qualquer espaço de negociação que envolva aspectos políticos,
porque não seria possível negociar os pontos políticos levantados por Trump sem
ferir frontalmente a soberania do país. A situação criada abriria, em
princípio, espaço de entendimento entre Executivo e Legislativo que permitiria
a ambos mudar o rumo de suas relações recentes, em prol da comum necessidade de
dar resposta a esse desafio.
Entretanto,
os movimentos da liderança do Congresso acham-se, no momento, constrangidos por
inacreditáveis reações ocorridas no seio das facções políticas que ali são mais
influentes. Dois dos governadores de oposição, ligados a partidos de grande
peso parlamentar e declarados pré-candidatos a presidente em 2026 implodiram
pontes que supostamente vinham abrindo com setores diversos da sociedade para
se viabilizarem como virtuais representantes da direita, mas isentos do
extremismo de Bolsonaro. Apoiando a narrativa
do presidente americano em favor do ex-colega brasileiro e tentando, com
raciocínios enviesados, culpar o atual presidente pela situação criada por essa
tramoia, Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado, apesar da relevância dos seus
partidos, agiram como Romeu Zema, filiado a um partido minúsculo, isto é, como
políticos amadores de si mesmos e sequazes de um ex-presidente réu de acusação
de tentativa de golpe de estado. Ainda que pegos de surpresa pelo movimento suicida
de Bolsonaro de entrar em conluio explícito com um governante estrangeiro para
escapar da Justiça do seu país, escolheram ficar ao seu lado como cúmplices. Desse
modo, em vez de potenciais candidatos da direita política unificada, tornaram-se
candidatos a receber, com razão, senhas para tríplice candidatura ao estigma de
conspiradores contra a soberania e a dignidade nacionais. Se a política
brasileira não fosse campo aberto ao insólito, os três já poderiam ser vistos como
cartas fora do baralho.
Contudo,
o que mais importa não é o destino eleitoral de políticos que se revelaram
menores. Importa mais a desorientação momentânea que essas condutas produziram
no campo da oposição, quando ela mal começava a se rearticular para se
recuperar do desgaste pontual do Congresso com a querela do IOF. Por tabela,
isso coloca pés de chumbo em Davi Alcolumbre e Hugo Mota na resposta ao chamado
do STF para um entendimento com o governo. O que poderia ser apresentado há uma
semana como gesto de boa vontade do Legislativo, hoje corre o risco de ser
adesão a uma mobilização nacional capitaneada pelo Executivo. Os chefes das
duas casas legislativas não puderam ter a mesma agilidade do presidente para se
apresentarem como defensores da economia do país contra o tarifaço porque
atores cruciais do campo político majoritário no Congresso fizeram com que
caminhassem sobre um terreno pantanoso.
Bem
outra é a situação de momento do presidente e do seu governo. Como bem observou
a jornalista Dora Kramer, “no momento, Lula está de posse dos talheres. A
conferir se aplicará estratégia e inteligência suficientes para se apoderar do
queijo” (Folha de S. Paulo, 12.07.25 – “Crise testa astúcia de Lula”). É
possível ir além e dizer que o presidente tem nas mãos a oportunidade de dar,
simultaneamente, solução a três problemas.
O mais recente, que o tarifaço potencialmente criará para seu governo em
caso de se consumar tal como anunciado por Trump; o impasse fiscal imediatamente
anterior, com o Congresso, em torno do IOF e o problema precedente que gerou
esse impasse: popularidade cadente do presidente e desaprovação crescente do
seu governo, em grande parte resultantes da atitude errática de ambos no
cumprimento do desiderato eleitoral de ser um governo de coalizão orientado ao
centro.
A
solução do primeiro problema depende do timing da transição entre o
momento de vocalizar o discurso da soberania nacional e o de entabular
negociações para mitigar de modo importante o escopo do tarifaço. É impossível
pedir ao presidente que não aproveite a bola política que lhe foi cedida de
bandeja. E não se pode querer também que tergiverse na rejeição aos termos
políticos inaceitáveis em que Trump colocou a questão. Mas o governo vai
precisar calibrar os festejos e não deixar que lhe distraiam da dura batalha
que ainda sequer começou, no plano da negociação comercial. Essa não será
tarefa direta da política, mas de uma diplomacia altamente experimentada nesse
tipo de jogo. Só que para cumprir seu papel essa diplomacia comercial não pode
ser atravessada pelos apetites da política eleitoral, sob pena de fracassar. E
fracasso aqui é algo muito concreto em suas repercussões sobre a economia e a
sociedade brasileiras. Uma elite
política responsável, que mereça esse nome, deve levar em conta que a coesão
social, alicerce de sua própria existência e reprodução, depende de governantes
considerarem a pluralidade de interesses dos governados e, ao mesmo tempo, terem
compromisso com a prevenção de impactos potencialmente negativos sobre o
conjunto dessa sociedade plural.
Fala-se
aqui de coisas muito concretas. De interesses de agentes econômicos ativos
(rentistas, empresários ricos, ou empreendedores pobres), que percebem o
problema econômico com o metro realista imediato que o tamanho de seus bolsos é
capaz de carregar. Também de um imenso contingente de pessoas economicamente
“passivas”, no sentido de que “sofrem” a economia ao trabalharem, seja como
clássicos “profissionais liberais”, assalariados, precarizados, beneficiários
de programas sociais, ou de coisa nenhuma. Pessoas que, na hipótese da
aplicação plena do tarifaço, passarão a viver sobressaltos maiores que os
muitos já vividos atualmente. E ainda de implicações de caráter geral, que
poderão afetar pessoas de todas as condições sociais. Para ficar num só
exemplo, de alto significado social, trata-se de não permitir que faltem coisas
como medicamentos importados a quem precisa deles para viver. Nenhuma formulação
de interesse nacional resistirá por muito tempo a tragédias como essa.
O
segundo problema – do impasse entre os poderes sobre o IOF – pode encontrar
agora um leito comum de discussão sobre o problema fiscal do governo que pode
passar pelo IOF, ou não. Contanto que scripts de mocinhos e pechas de
bandidos sejam temporiamente moderados até a contenda eleitoral se instalar
efetivamente e não artificialmente, como tem acontecido, em detrimento de
pautas que mais importam à maioria dos eleitores, ainda não engajada na peleja.
Noutras palavras, os cheffs e cozinheiros que preparam o cardápio
eleitoral devem retornar, por ora, às cozinhas para que a sala possa ser usada,
antes da hora do almoço, para conversas menos gulosas, públicas e publicáveis.
O maior beneficiário dessa desaceleração na definição dos cardápios será o
governo, que tem nas mãos agora mais chances de moderar a oposição, seja porque
a popularidade do presidente pode começar a se recuperar, seja porque sua
estratégia tem tudo para mudar, agora que o país parece ter no tarifaço um
perigo real que pode lhe dar coesão e não mais espantalhos ideológicos que
fazem a delícia das militâncias polarizadas.
Chega-se,
por aí, ao terceiro problema que a conjuntura inesperada traz uma oportunidade
de resolver. A recuperação, ainda que parcial, da credibilidade do governo não
pode ficar dependente apenas da problemática recuperação da popularidade do seu
chefe. Ainda que ela possa ser buscada por uma estratégia especifica de marketing
eleitoral, uma recuperação sustentável da capacidade de governar depende de
comprometer outros partidos relevantes, além do PT e amplos segmentos da
sociedade com um programa de ação para os tempos difíceis que se avizinham. É
pegar. Ou largar para seguir na guerra.
*Cientista político e
professor da UFBA.
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