terça-feira, 15 de julho de 2025

Fator Trump: uma segunda chance para o governo Lula - Paulo Fábio Dantas Neto*

Tenho sentido, nos últimos dias, mais do que uma intensa simpatia, uma solidariedade autointeressada, como colunista, por esforços de análise que tentam abrir caminho para temas políticos de fundo, num momento em que se tem um fato que parece encerrar em si mesmo o poder de revogar o tempo e tudo o que ele vinha ensinando. O tarifaço que o presidente norte-americano ameaça impor ao Brasil é um fato espaçoso que, além de parecer ocupar todo o presente, parece também explicar o passado e prever o futuro. Ideias e personagens do nosso cotidiano político são relidos e reinterpretados com lentes de curto alcance, que o impacto instantâneo do acontecimento nos fornece. Todo e qualquer assunto antes importante torna-se irrelevante ou, no máximo, um tópico daquilo que supostamente mais interessa, isto é, o que acontecerá com a suposta disputa entre Lula e Bolsonaro depois do tarifaço de Trump. Quem dos dois ganha ou perde com ele tornou-se questão cuja resposta selaria a sorte do país.

Mas o conhecimento antecipado do resultado dessa contenda interessa a quem? Parte da parcela politizada do país (aquela parte que iguala politização e engajamento) assegura que o desfecho interessa a todos e de preferência, já. Mesmo que se argumente que Bolsonaro já está virtualmente fora da disputa, essa realidade não é admitida em público pelos engajados em qualquer dos polos. Num deles afirma-se a certeza de que será bolsonarista qualquer candidato da oposição e o outro lado segue crendo, como se viu claramente nos últimos dias, numa reabilitação espúria do seu líder para a disputa, através de uma ingerência infame de Trump.  Daí a convicção dos engajados de que o grande efeito do fator Trump é atuar diretamente sobre essa disputa da qual, ao fim e ao cabo, dependeria nosso futuro.

Essa convicção de alguns tem o poder de mobilizar não apenas as redes sociais, onde o anonimato é rei, e, com isso, tensionar e estressar políticos e partidos dependentes de eleitores, também anônimos. A convicção engajada de que o desfecho dessa pugna é a coisa mais importante para os brasileiros em geral mobiliza igualmente a imprensa, pela qual respondem nomes e sobrenomes. E também institutos de pesquisa, que checam a pertinência de tal convicção, consultando amostras confiáveis do que seriam os “todos”. Essa checagem poderia ser um antidoto cético benfazejo para conter fábulas ilusionistas e manipulações inescrupulosas dos sentimentos públicos. Mas não é bem assim que a banda toca.

O simples fato da consulta – e já se anuncia uma para o meio desta semana - desperta nas pessoas consultadas o desafio de responder, o que é feito tanto por quem estava quanto por quem não estava preliminarmente interessado. A pesquisa, em si um ato despertador, terá resultados que serão divulgados por meios de comunicação. O cuidado profissional de avisar ao público que são um retrato do momento - que, no momento seguinte, pode se desfazer - é cuidado correto, mas inútil. Os engajados não prestarão atenção nele e sim nos números, seja para alardeá-los, se favorecem ao seu lado, seja para escondê-los ou questioná-los, no caso oposto. Mas uns e outros terão os números em conta na sua estratégia política e na multiplicação do engajamento de sua militância, para ampliá-los ou revertê-los.

Contudo, há temas políticos mais relevantes em jogo do que o efeito Trump sobre o desfecho particular desse duelo, aliás, bem comentado, em recente entrevista sobre renovação política a médio prazo, pelo cientista político Sergio Fausto (Estadão:  entrevista a Roseann Kennedy e Zeca Ferreira, em 13.07.25). Dentre esses temas estão as relações políticas e institucionais entre Executivo e Legislativo, sobre as quais o tarifaço de Trump pode ter inesperado efeito desobstrutor de canais de entendimento político.

Vale aqui lembrar que no último dia 04.07, o ministro Alexandre Moraes, do STF, suspendeu decretos dos poderes Executivo e Legislativo, que foram mutuamente acusados de transgredirem a Constituição e o equilíbrio de poderes que ela prescreve. E marcou, para esta terça-feira, 15.07, uma reunião com representantes do Governo e do Congresso, em busca de um entendimento, antes de, na falta deste, exercer o controle concentrado de constitucionalidade, que a mesma Carta confere ao Poder Judiciário. E vale lembrar certos traços da cena, pois o tarifaço de Trump praticamente varreu, em poucas horas, da pauta política pública, esse assunto e seus desdobramentos, como se às muitas moléstias do momento, viesse se juntar uma espécie de mal de Alzheimer, para comprometer a memória mais recente dos fatos.

Até a última quarta-feira, a sociedade política brasileira estava conflagrada em torno da querela do IOF.  O enfrentamento, com óbvios ingredientes eleitorais, entre os dois poderes, escalou um impasse político que fez os mais afoitos e apocalípticos atribuírem ao confronto uma dimensão de crise institucional. Mais do que isso: o lado governista – constrangido pelas pesquisas que indicavam queda na aprovação do governo e na popularidade do presidente – reagiu a uma ação agressiva da liderança do Congresso que, confiada em tais indicadores, imprudentemente atropelou negociações em curso e tentou emparedar o presidente com um xeque-mate, ao anular, por decreto próprio, o decreto do Executivo. A reação de Lula e do seu partido foi, deliberadamente, fazer o conflito transbordar para a sociedade.

Numa ofensiva comunicacional em que a estratégia do governo e da pré-campanha eleitoral fundiram-se numa coisa só, presidente e partido acionaram, diretamente e através de sua militância digital, as redes sociais para venderem a controvérsia em torno do decreto da Fazenda sobre o IOF como uma luta entre um presidente e um ministro defensores dos pobres e oprimidos contra um Congresso reacionário, inimigo do povo e comprometido só com interesses individuais dos parlamentares e com uma “elite” do andar de cima, que não quer pagar impostos. Num súbito cavalo de pau discursivo, o que era um decreto de declarado objetivo arrecadatório do ministério da Fazenda para cumprir o arcabouço fiscal tornou-se uma cruzada ideológica que chegou a atiçar a memória do confronto do governo Jango contra as “forças da reação”. Na versão atualizada, surgia um presidente mais resoluto, que de vítima prometia converter-se em herói e, como vilões, o Congresso, as elites e seus respectivos emblemas, o Centrão e a Faria Lima,  

Noves fora a fábula que fez o real conteúdo do decreto submergir e afora também o anacronismo da polarização ensaiada, é fato que no meio da semana passada o lado governista já computava ganhos e a cúpula do Congresso já acusava o revés que sua imprudência imediatista, a mesquinhez e a estreiteza social dos interesses que a move provocaram. Erroneamente, julgou agonizante um sagaz e experimentado líder político plenamente decidido a não economizar na retórica populista. Um político que ainda é capaz de compensar, no curto prazo, seu indisfarçável declínio no médio prazo e sua falta de visão de futuro para o país, com um aproveitamento eficaz do erro primário do adversário.  

A nova situação criada não chegava a configurar uma nova correlação de forças, posto que é fato a dificuldade do governo de lidar com a maioria do Congresso e também é fato que a desmoralização pública dos oponentes como verdugos do povo não implica automaticamente no reconhecimento do chefe do governo como seu defensor. Mas sem dúvida o governo dava um passo na direção de recuperar um equilíbrio instável pelo qual poderia voltar a 2022 e vender de novo Lula como o caminho menos pior. Daí que o presidente, diante do chamado do ministro Moraes aos dois poderes governativos para que assumam sua responsabilidade comum de produzir governabilidade em vez de impasses, pôde ter espaço para não recuar tanto quanto teve de fazer a cúpula do Legislativo, visivelmente disposta a jogar água na fervura que provocou. Recuo tático para alinhar suas forças, afinal consideráveis, dado o peso do conjunto da direita no Congresso e no eleitorado. Peso que lhe dava a possibilidade, inclusive, de traçar estratégias frente a Bolsonaro mais autônomas do que a esquerda pode ter em relação a Lula.

O anúncio do tarifaço, por Trump, já altera significativamente, não tanto a disputa eleitoral de 2026, que ainda está relativamente longe, mas as opções de movimento dos dois poderes e das respectivas facções políticas que os dirigem. Paradoxalmente (mas também como é habito resultar de impulsos disruptivos do tóxico presidente norte-americano), o efeito da ameaça de tarifaço inibe movimentos do comando do Congresso e abre um amplo campo de recomposição política para o governo.

Ao escrever uma carta impertinente ao governo brasileiro, previamente publicada em redes sociais, ao tentar manietar a ação do Poder Judiciário e interferir no processo eleitoral de 2026, Trump promoveu múltiplas e insólitas agressões aos mínimos e máximos ritos de respeito na relação entre dois estados soberanos. O embaixador Rubens Ricúpero, dentre outras respeitáveis vozes, deixou claro, em elucidativa e magistral entrevista (Band News, Canal Livre em 13.07.25), que essa conduta descarta qualquer espaço de negociação que envolva aspectos políticos, porque não seria possível negociar os pontos políticos levantados por Trump sem ferir frontalmente a soberania do país. A situação criada abriria, em princípio, espaço de entendimento entre Executivo e Legislativo que permitiria a ambos mudar o rumo de suas relações recentes, em prol da comum necessidade de dar resposta a esse desafio.

Entretanto, os movimentos da liderança do Congresso acham-se, no momento, constrangidos por inacreditáveis reações ocorridas no seio das facções políticas que ali são mais influentes. Dois dos governadores de oposição, ligados a partidos de grande peso parlamentar e declarados pré-candidatos a presidente em 2026 implodiram pontes que supostamente vinham abrindo com setores diversos da sociedade para se viabilizarem como virtuais representantes da direita, mas isentos do extremismo de Bolsonaro.  Apoiando a narrativa do presidente americano em favor do ex-colega brasileiro e tentando, com raciocínios enviesados, culpar o atual presidente pela situação criada por essa tramoia, Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado, apesar da relevância dos seus partidos, agiram como Romeu Zema, filiado a um partido minúsculo, isto é, como políticos amadores de si mesmos e sequazes de um ex-presidente réu de acusação de tentativa de golpe de estado. Ainda que pegos de surpresa pelo movimento suicida de Bolsonaro de entrar em conluio explícito com um governante estrangeiro para escapar da Justiça do seu país, escolheram ficar ao seu lado como cúmplices. Desse modo, em vez de potenciais candidatos da direita política unificada, tornaram-se candidatos a receber, com razão, senhas para tríplice candidatura ao estigma de conspiradores contra a soberania e a dignidade nacionais. Se a política brasileira não fosse campo aberto ao insólito, os três já poderiam ser vistos como cartas fora do baralho.

Contudo, o que mais importa não é o destino eleitoral de políticos que se revelaram menores. Importa mais a desorientação momentânea que essas condutas produziram no campo da oposição, quando ela mal começava a se rearticular para se recuperar do desgaste pontual do Congresso com a querela do IOF. Por tabela, isso coloca pés de chumbo em Davi Alcolumbre e Hugo Mota na resposta ao chamado do STF para um entendimento com o governo. O que poderia ser apresentado há uma semana como gesto de boa vontade do Legislativo, hoje corre o risco de ser adesão a uma mobilização nacional capitaneada pelo Executivo. Os chefes das duas casas legislativas não puderam ter a mesma agilidade do presidente para se apresentarem como defensores da economia do país contra o tarifaço porque atores cruciais do campo político majoritário no Congresso fizeram com que caminhassem sobre um terreno pantanoso.

Bem outra é a situação de momento do presidente e do seu governo. Como bem observou a jornalista Dora Kramer, “no momento, Lula está de posse dos talheres. A conferir se aplicará estratégia e inteligência suficientes para se apoderar do queijo” (Folha de S. Paulo, 12.07.25 – “Crise testa astúcia de Lula”). É possível ir além e dizer que o presidente tem nas mãos a oportunidade de dar, simultaneamente, solução a três problemas.  O mais recente, que o tarifaço potencialmente criará para seu governo em caso de se consumar tal como anunciado por Trump; o impasse fiscal imediatamente anterior, com o Congresso, em torno do IOF e o problema precedente que gerou esse impasse: popularidade cadente do presidente e desaprovação crescente do seu governo, em grande parte resultantes da atitude errática de ambos no cumprimento do desiderato eleitoral de ser um governo de coalizão orientado ao centro.

A solução do primeiro problema depende do timing da transição entre o momento de vocalizar o discurso da soberania nacional e o de entabular negociações para mitigar de modo importante o escopo do tarifaço. É impossível pedir ao presidente que não aproveite a bola política que lhe foi cedida de bandeja. E não se pode querer também que tergiverse na rejeição aos termos políticos inaceitáveis em que Trump colocou a questão. Mas o governo vai precisar calibrar os festejos e não deixar que lhe distraiam da dura batalha que ainda sequer começou, no plano da negociação comercial. Essa não será tarefa direta da política, mas de uma diplomacia altamente experimentada nesse tipo de jogo. Só que para cumprir seu papel essa diplomacia comercial não pode ser atravessada pelos apetites da política eleitoral, sob pena de fracassar. E fracasso aqui é algo muito concreto em suas repercussões sobre a economia e a sociedade brasileiras.  Uma elite política responsável, que mereça esse nome, deve levar em conta que a coesão social, alicerce de sua própria existência e reprodução, depende de governantes considerarem a pluralidade de interesses dos governados e, ao mesmo tempo, terem compromisso com a prevenção de impactos potencialmente negativos sobre o conjunto dessa sociedade plural.

Fala-se aqui de coisas muito concretas. De interesses de agentes econômicos ativos (rentistas, empresários ricos, ou empreendedores pobres), que percebem o problema econômico com o metro realista imediato que o tamanho de seus bolsos é capaz de carregar. Também de um imenso contingente de pessoas economicamente “passivas”, no sentido de que “sofrem” a economia ao trabalharem, seja como clássicos “profissionais liberais”, assalariados, precarizados, beneficiários de programas sociais, ou de coisa nenhuma. Pessoas que, na hipótese da aplicação plena do tarifaço, passarão a viver sobressaltos maiores que os muitos já vividos atualmente. E ainda de implicações de caráter geral, que poderão afetar pessoas de todas as condições sociais. Para ficar num só exemplo, de alto significado social, trata-se de não permitir que faltem coisas como medicamentos importados a quem precisa deles para viver. Nenhuma formulação de interesse nacional resistirá por muito tempo a tragédias como essa.

O segundo problema – do impasse entre os poderes sobre o IOF – pode encontrar agora um leito comum de discussão sobre o problema fiscal do governo que pode passar pelo IOF, ou não. Contanto que scripts de mocinhos e pechas de bandidos sejam temporiamente moderados até a contenda eleitoral se instalar efetivamente e não artificialmente, como tem acontecido, em detrimento de pautas que mais importam à maioria dos eleitores, ainda não engajada na peleja. Noutras palavras, os cheffs e cozinheiros que preparam o cardápio eleitoral devem retornar, por ora, às cozinhas para que a sala possa ser usada, antes da hora do almoço, para conversas menos gulosas, públicas e publicáveis. O maior beneficiário dessa desaceleração na definição dos cardápios será o governo, que tem nas mãos agora mais chances de moderar a oposição, seja porque a popularidade do presidente pode começar a se recuperar, seja porque sua estratégia tem tudo para mudar, agora que o país parece ter no tarifaço um perigo real que pode lhe dar coesão e não mais espantalhos ideológicos que fazem a delícia das militâncias polarizadas.

Chega-se, por aí, ao terceiro problema que a conjuntura inesperada traz uma oportunidade de resolver. A recuperação, ainda que parcial, da credibilidade do governo não pode ficar dependente apenas da problemática recuperação da popularidade do seu chefe. Ainda que ela possa ser buscada por uma estratégia especifica de marketing eleitoral, uma recuperação sustentável da capacidade de governar depende de comprometer outros partidos relevantes, além do PT e amplos segmentos da sociedade com um programa de ação para os tempos difíceis que se avizinham. É pegar. Ou largar para seguir na guerra.

*Cientista político e professor da UFBA.

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