Entre o final do século XVI e o início do século XVIII, o estado de Alagoas atual serviu de palco para uma verdadeira epopeia, encarnada pelos combatentes do Quilombo dos Palmares. Ao questionar toda uma estrutura que poderíamos denominar de igualitária, a qual prevalece até meados do século XVI, o colonialismo português abre a via para a sociedade de classes no Brasil: no lugar das roças indígenas, o latifúndio; no lugar dos homens livres, os escravos.
O Quilombo representa para os escravos negros, índios, mestiços e brancos pobres - para os que não tinham, enfim, vez nem voz na sociedade colonial - acima de tudo uma alternativa de vida. De uma vida sem perseguições nem espoliações. Contrastando com a penúria generalizada na Colônia, praticamente mergulhada na monocultura do açúcar, existia em Palmares um aparelho produtivo capaz de satisfazer não apenas as necessidades materiais dos membros da comunidade, como também gerar um excedente, negociado junto aos vilarejos coloniais vizinhos.
Essa primeira tentativa concreta de superação da realidade colonial foi finalmente esmagada pelas forças portuguesas e pelas tropas arregimentadas pelos senhores de engenho e escravos de várias capitanias. Não obstante isso, a compreensão do que se passou nas florestas que se estendiam do cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até o norte do curso inferior do rio São Francisco, em Alagoas, se revela de extrema importância: o Quilombo dos Palmares logrou construir uma comunidade conduzida com autonomia pelos ex-escravos e homens livres que ali nasceram.
Convém examinar, além das formas de organização material do Quilombo (trabalho livre, propriedade comunitária da terra), a complexa questão do território efetivamente controlado pelos quilombolas. Um território frequentemente invadido, depredado. Trata-se, na realidade, de uma sociedade acossada.
Nesse contexto, as forças produtivas não têm como se expandir além das atividades de subsistência e se encontram, de fato, bloqueadas. Em Palmares, vigora uma forma social de produção algo coletivizada, cuja especificidade maior consiste em ser transitório e em servir de refúgio para os perseguidos e espoliados da sociedade oficial. A segurança e a sobrevivência, a guerra e o medo - eis os verdadeiros motores da comunidade palmarina. Zumbi dos Palmares foi o grande nome dessa epopeia. Batizado com o nome de Francisco, ele nascera na mítica Serra da Barriga, em 1655. Tinha, portanto, 40 anos ao ser assassinado.
Criado pelo padre Antonio de Melo, o menino Francisco, então coroinha que "conhecia todo o latim que há mister e crescia em português e latim muito a contento", fugira para Palmares em 1670, tornando-se em poucos anos o dirigente máximo do Quilombo. Para o historiador Joel Rufino dos Santos, a troca de nomes de Franscico para Zumbi poderia significar uma recuperação da própria identidade, das raízes africanas. Faz sentido. Mas mesmo assim, resta saber se Zumbi mesmo reivindicava esse nome para si, ou se, ao contrário as autoridades é que se referiam a ele dessa forma - o que também não deixava de ser significativo.
Ao aceitar o confronto final em Macaco, capital do Quilombo, no ano de 1694, Zumbi provavelmente não via outra saída para si e o movimento que ele liderava. Ou seja, fora até o limite de suas forças. Mas essas mesmas forças esbarravam nas chamadas condições históricas objetivas. Afinal, a ordem escravista não dava aos escravos rebelados aquelas condições mínimas para abatê-lo. Ou seja, a realização de uma política de alianças que fosse além do própria estamento escravista, submetido, de outra parte, a constantes renovações de natureza demográfica, devido à curta duração do ciclo de vida do escravo.
Ora, isso dificultava sobremaneira a formação de uma memória de classe. A transmissão indispensável de experiências. Além do que, os próprios escravos se dividiam entre trabalhadores produtivos - que operavam nos engenhos e no corte da cana-de-açúcar - e trabalhadores domésticos. Isso, para não aludirmos aos diferentes horizontes étnicos presentes no Quilombo. De toda forma, Zumbi e seus companheiros nos deixaram uma grande lição: criaram um Brasil não-oficial, em contraposição ao Brasil oficial, um projeto estatal português sem dúvida.
Em Palmares, surgia uma Nação chamada Brasil, ainda que às avessas. E, ainda hoje, a luta desses homens ecoa, forçando em todos nós um justo sentimento de admiração. Um grande dirigente revolucionário do nosso tempo observou certa feita que “um chefe militar não pode esperar arrancar uma vitória indo além dos limites impostos pelas condições materiais, mas ele pode e deve lutar pela vitória nos limites mesmos dessas condições. O cenário onde se desenrolam suas atividades repousa sobre condições materiais objetivas, mas ele pode, sobre este cenário, conduzir ações magníficas, deu uma grandeza épica”.
Zumbi, enquanto chefe militar, parece ter compreendido isso.
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* Historiador e jornalista, é autor de uma dezena e meia de livros, entre os quais Memorial dos Palmares, Brasil, 500 em documentos, Giocondo Dias - Uma vida na clandestinidade e O historiador e o tapeceiro.
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