Por Helena Celestino – Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Algumas imagens são ícones da cultura francesa. Entram nessa categoria a foto do filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) à frente de uma delegação de intelectuais no Palácio do Eliseu pedindo ao presidente da França ajuda para vietnamitas em fuga da guerra no fim dos anos 70. Ou a passeata de quatro milhões de franceses nas ruas depois do massacre na redação do "Charlie Hebdo", em janeiro. A essa galeria de grandes momentos acaba de ser incorporado o minuto de silêncio com que Paris homenageou os mortos da geração Bataclan, a maior vítima dos brutais atentados de sexta-feira. Uns e outros reforçam a imagem da França solidária e orgulhosa de seus valores republicanos, na qual o intelectual engajado no estilo Sartre é uma especialidade tão francesa quanto os queijos e vinhos.
Só que um tabu foi quebrado entre o atentado de janeiro e o da semana passada. A voz de Marine Le Pen, presidente da Frente Nacional, foi ignorada no início do ano ao pedir o fechamento das fronteiras aos imigrantes como resposta ao terrorismo. Nesta semana, ao defender de novo "a limpeza dos subúrbios" e o "fim da política de imigração", a líder da extrema-direita estava fortalecida pelo apoio de filósofos e polemistas que endossaram suas teses xenófobas. Acenando para o perigo de a França perder sua identidade por causa da chegada de refugiados, fugindo da guerra da Síria, outros conflitos no Oriente Médio e da pobreza na África, foram os primeiros pensadores franceses a dar aura de respeitabilidade às teses racistas do maior partido extremista da Europa. "No debate cultural francês hoje, vemos coisas que jamais veríamos há 10 ou 15 anos", diz Bruno Cautrés, professor da Sciences Po, um dos mais respeitados centros de estudos sociais e políticos do mundo.
No centro da polêmica, estão os filósofos Michel Onfray e Alain Finkielkraut, o ensaísta Eric Zemmour e o escritor Michel Houllebecq, todos com medo das ameaças que personificam nos refugiados. Num reflexo da nova geografia cultural global, são celebridades na França. "Onipresentes, os polemistas reacionários impuseram seus temas demagógicos", manchetou o "Libération". "Nenhum deles vai ficar na história. Onfray é o mais sofisticado intelectualmente, mas nem ele nem Fienkielkraut terão livros lembrados no futuro", afirma o sociólogo Eric Martel, autor de "Smart" e "A Guerra Global das Mídias e Culturas".
Onfray, que virá ao Brasil em fevereiro, é o filósofo mais popular da França, diz "l'Obs" (a antiga revista "Nouvelle Observateur") em reportagem de capa publicada há um mês. "Cosmos", seu último livro, é um tratado sobre a deontologia do materialismo. Vendeu 125 mil exemplares. No entanto, são mais numerosos os franceses que o conhecem pelas polêmicas suscitadas em suas intervenções na mídia. Uma das mais recentes foi a defesa de uma aliança da extrema esquerda com a Frente Nacional por serem as duas correntes, assim como ele, soberanistas. Ou seja, contra a União Europeia e a entrega de parte dos poderes nacionais a Bruxelas. Reivindica-se de esquerda, mas ataca ícones do pensamento pós-68, acusando-os de esquecer o povo francês em prol de "micropovos", como "os palestinos e os esquizofrênicos defendidos por [Gilles] Deleuze [1925-1995], os homossexuais, prisioneiros e malucos de [Michel] Foucault [1926-1984] e os imigrantes ilegais de [François] Badiou". "A prioridade é para os estrangeiros e não para o povo francês que sofre", costuma repetir.
O comprometimento histórico dos intelectuais com o estado do mundo vem saindo de moda, numa violação do código de honra dos intelectuais de esquerda: a obrigação de ter uma reflexão global. "Os pensadores franceses estão se fechando no espaço e no tempo, só falam da França e caem na tentação de voltar à idade de ouro, a terceira República, do fim do século XIX", disse ao "Le Monde" Thomas Wieder, professor da universidade de Oxford, especialista na história da França e autor do recém-lançado "Este País que Ama as Ideias".
O tema do declínio francês, a saudade dos velhos e gloriosos tempos, a tentação de fechar as fronteiras, a crítica ao islamismo e a desconfiança dos estrangeiros permeia os textos de Zemmour, antigo jornalista e apresentador do programa "On n'est pas Couché" transformado em ensaísta de sucesso e autor do best-seller "O Suicídio Francês". É com tons fortes que pinta a decadência do país, o nervosismo com a questão da imigração e identidade. "Ele virou caricatura dele mesmo. Tem um papel negativo nesse debate, mas reconheço que em uma democracia deve-se falar de todos os problemas. O sucesso do seu livro explica o sucesso previsto da Frente Nacional nas próximas eleições", diz Cautrés. Ele projeta a vitória do partido de Marine na região de Pas de Calais, onde 5 mil imigrantes criaram um acampamento chamado de A Selva, e talvez também na Provence, Alpes e Côte d'Äzur.
O virulento debate que divide a sociedade francesa sobre a acolhida aos refugiados racha também os partidos de esquerda e de direita. Os valores republicanos são um álibi para uns e outros: muito diferente do modelo britânico ou americano, a França sempre apostou na assimilação dos estrangeiros à cultura dominante, ou seja, não dá tanta importância às diferenças de raça e religião, em troca do respeito aos valores promovidos pela escola laica e democrática. "A esquerda mais moderna defende o multiculturalismo e rejeita a assimilação. É um embate entre valores e representações do mundo, não necessariamente entre esquerda e direita", diz Cautrés.
O multiculturalismo permite a criação de Chinatowns ou bairros judeus, onde comunidades de origem semelhantes se agrupam e mantêm suas tradições. O direito à diferença horroriza Fienkekrault, autor do clássico "A Derrota do Pensamento" (1987), em que declara a vitória da barbárie na cultura. "É comum chamar de cultural atividades nas quais o pensamento não está presente de nenhuma forma", dizia ele, referindo-se à Hollywood e à TV. Cria o conceito de relativismo cultural e, ao levá-lo para a política, conclui que, por generosidade, os intelectuais franceses idealizaram exageradamente as vítimas do racismo e do colonialismo, perdendo o senso dos valores universais. "O politicamente correto fez muito mal", diz.
No caótico panorama do século XXI, a filosofia de Fienlkielkrault radicalizou-se num combate feroz aos movimentos de defesa da igualdade e antirracistas, combinado com a exaltação da identidade nacional e a denúncia do multiculturalismo. Diante dos "néo-réactionnisme", a pergunta no país "da igualdade, liberdade e solidariedade" virou manchete de jornal: "Onde estão os intelectuais de esquerda?"
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