• Especialistas revelam o papel de intelectuais negros, como Machado de Assis, na Abolição
Eduardo Vanini - O Globo
Quem observa a força com que os movimentos sociais têm ganhado as ruas do Brasil, em nome de diferentes causas, pode não imaginar o quão distantes e organizadas são as raízes desse tipo de ação no país.
É o caso do movimento abolicionista, considerado por muitos historiadores uma das primeiras grandes mobilizações populares em terras brasileiras. Por trás desse movimento, que reverberou por vias, teatros e publicações impressas no final do século XIX, estão atores nem sempre lembrados com o devido destaque: literatos negros que se empenharam em dar visibilidade ao tema. Debruçados sobre essa fase decisiva da história do Brasil, uma leva de historiadores tem revelado detalhes sobre a atuação desses personagens e mostrado que a conexão entre eles era muito maior do que se imagina.
A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto fez deste tema sua tese de doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Ela investigou a atuação de homens negros, livres, letrados e atuantes na imprensa e no cenário político-cultural no eixo Rio-São Paulo, como Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio e Theophilo Dias de Castro. Segundo Ana Flávia, eles não só colaboraram para que o assunto ganhasse as páginas de jornais, como protagonizaram a criação de mecanismos e instrumentos de resistência, confronto e diálogo. Ela percebeu que não eram raros os momentos em que desenvolveram ações conjuntas.
— O acesso ao mundo das letras e da palavra impressa foi bastante aproveitado por esses “homens de cor”, que não apenas se valeram desses trânsitos em benefício próprio, mas também aproveitavam para levar adiante projetos coletivos voltados para a melhoria da qualidade de vida no país. Desse modo, aquilo que era construído no cotidiano, em conversas e reuniões, ganhava mais legitimidade ao chegar às páginas dos jornais — conta Ana Flávia.
A utilização da imprensa por eles foi de suma importância, na visão das pesquisadora. A “Gazeta da Tarde”, por exemplo, sob direção tanto de Ferreira de Menezes quanto de José Patrocínio, dedicou considerável espaço para tratar de casos de reescravização de libertos e escravização de gente livre, crime previsto no artigo 179 do Código Criminal do Império, como pontua a historiadora.
— Ao mesmo tempo, o jornal também se preocupou em dar visibilidade a trajetórias de sucesso de gente negra na liberdade, como aconteceu em 1883, quando a “Gazeta” publicou em folhetim uma versão da autobiografia do destacado abolicionista afro-americano Frederick Douglass — ilustra Ana Flávia.
Como observa o professor do Programa de Pós-graduação em História da UFF Humberto Machado, eles conheciam de perto as mazelas do cativeiro e levaram essa realidade às páginas dos jornais. José do Patrocínio, por exemplo, publicou livros que mostravam detalhes da escravidão como pano de fundo em formato de folhetim, que fizeram muito sucesso. Esses trabalhos penetravam em setores que desconheciam tal realidade.
— Até os analfabetos tomavam conhecimento, porque as pessoas se reuniam em quiosques no Centro do Rio de Janeiro e escutavam as notícias. A oralidade estava muito presente nesse processo. Fora isso, havia eventos, como conferências e apresentações teatrais, e as pessoas iam tomando conhecimento e se mobilizando contra a escravidão. O resultado foi um discurso voltado não só à população em geral, mas também aos senhores de engenho, mostrando a eles a inviabilidade da manutenção dos cativeiros — relata o professor, que escreveu o livro “Palavras e brados: José do Patrocínio e a imprensa abolicionista no Rio”.
Para a professora Martha Abreu, do Departamento de História da UFF e doutora em história negra no Brasil, a conexão entre intelectuais negros seria inevitável diante de um cenário como aquele. E essa ligação foi fundamental para que o movimento ganhasse adesão popular.
— Quando analisamos esses escritores e verificamos de quem eram amigos, percebemos que certamente estavam sempre juntos. E essa troca foi fundamental para que o movimento ganhasse corpo. Ele envolveu jornalistas, lideranças religiosas, operários, trabalhadores de porto, intelectuais e muitos outros.
Título póstumo da OAB
Outro importante personagem desse contexto é Luiz Gonzaga de Pinto Gama. Seu nome, inclusive, foi lembrado no começo deste mês, quando a Ordem dos Advogados do Brasil concedeu a ele o título de advogado, 133 anos após sua morte. Nascido em Salvador, filho de um português com uma escrava liberta, Gama foi vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha 10 anos. Após conquistar sua alforria, tentou frequentar a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, hoje da Universidade de São Paulo, mas foi impedido por ser negro. Ele, então, assistiu às aulas como ouvinte e o conhecimento adquirido o possibilitou atuar na defesa jurídica de negros escravos. Além disso, ao lado de Rui Barbosa, fundou o jornal “Radical Paulistano”.
De acordo com o diretor do Instituto Luiz Gama, Camilo Onoda Caldas, há dois fatos marcantes na biografia do literato que merecem ser celebrados:
— Primeiro, sua atuação nos tribunais. Ele utilizou seus conhecimentos jurídicos obtidos de forma autodidata e sua escrita e oratória impecáveis para obter a liberdade de mais de 500 escravos. Os autos de processos judiciais encontrados mostram que Luiz Gama possuía um domínio sofisticado das leis, que foi imprescindível para obter vitória nos processos judiciais — relata. — Em segundo lugar, ele era um abolicionista, pois sabia que a atuação perante o Poder Judiciário tinha um caráter limitado e que, portanto, era preciso desenvolver um embate no nível político, o que implicava em um conflito de classe, pois havia forte oposição por parte da elite agrária brasileira que explorava o trabalho dos negros.
A tese de Ana Flávia destaca também participação de Machado de Assis neste contexto. Segundo ela, apesar de ser um sujeito discreto, se mostrava bastante atento aos acontecimentos:
— Machado manteve vínculos com Francisco de Paula Brito, Castro Alves, Ferreira de Menezes e Antonio Cândido Gonçalves Crespo. Desse último, guardou a carta que recebera em junho de 1871, em que o remetente manifestava satisfação pelo fato de ambos serem homens de cor, tal como registrado nesse trecho:
“A Vossa Excelência, já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma secreta simpatia que para si me levou quando me disseram que era... de cor como eu”.
Como lembra a professora de Literatura do Colégio Pedro II, Gloria Vianna, doutora em Literatura Comparada pela UFF, Machado de Assis era afrodescendente e em sua literatura é possível notar que este é o lugar a partir do qual ele fala. A grande questão, segundo ela, é que ele nunca fez literatura panfletária, e muitos ainda cobram isso dele.
Para entendê-lo melhor, de acordo com Gloria, é preciso considerar quem eram seus leitores. Segundo ela, o censo de 1876 mostra que só 16% da população sabia ler. E Machado escrevia exatamente para esses 16% da elite branca leitora.
— Ele elabora, então, um projeto genial: faz a elite branca confessar os seus delitos, a sua miséria. E nisso ele é impiedoso, quando não, irônico — conta a professora. — É clássico o exemplo da crônica publicada no jornal “Gazeta de Notícias”, em 19 de maio de 1888, em que um senhor, desejoso de ser eleito deputado, entende que seria uma ótima publicidade libertar seu escravo antes da abolição e faz um banquete para dar a notícia e receber os aplausos requeridos por seu gesto. Mas, depois da divulgada abolição, o senhor continua a tratar o rapaz de forma desumana.
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