- Valor Econômico
A bioeconomia é o caminho mais acessível para que o Brasil deixe o triste lugar que ocupa na retaguarda da inovação tecnológica global
A Mesa Redonda da Soja responsável, que reúne sete mil produtores em países como Estados Unidos, Brasil, Argentina e China reagiu à recente aceleração na derrubada de florestas tropicais com uma orientação clara: desmatamento zero. Não se trata de desmatamento ilegal zero até 2030, como preconizado pelo Brasil. A ideia é: mesmo que a lei o permita, o bom senso, a ética e o sentido estratégico dos negócios não podem tolerar que o avanço da produção de soja siga vinculado à destruição florestal: “zero é zero”, tornou-se o lema da organização.
Têm sentido bastante semelhante as recentes tomadas de posição dos governadores do Pará, do Amapá, do Amazonas e do Maranhão, inclusive em encontros internacionais como a Climate Week, em Nova York, quando da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nesta ocasião houve reuniões empresariais cuja tônica central era a urgência de um novo paradigma para o crescimento econômico da Amazônia. Como já preconizava documento da Academia Brasileira de Ciências de 2008, o grande desafio brasileiro do Século XXI consiste em fazer com que este crescimento se apoie fundamentalmente em ciência e tecnologia, não em devastação.
Apesar do recente aumento na invasão de terras indígenas, da intensificação de atividades ilegais na exploração madeireira e no garimpo clandestino e das ameaças a ativistas, é impressionante o avanço e a consistência das propostas elaboradas por cientistas, ONGs, empresários e também por governos da região.
Mais que isso, os próprios povos tradicionais são hoje protagonistas de iniciativas transformadoras e ligadas à economia da floresta em pé. São ainda poucos os produtos da floresta cujas cadeias produtivas já têm impacto internacional. Mas que se trate de sementes, do açaí, da borracha ou da castanha do Pará, os dados mostram rendimentos por hectare sistematicamente superiores aos alcançados pelo gado e pela própria soja, como vêm mostrando os trabalhos com ampla repercussão nas melhores revistas científicas internacionais de Ismael e Carlos Nobre, de Raoni Rajão e de profissionais que atuam em organizações não governamentais como o Imazon, o Ipam e o Instituto Socioambiental, entre outros. O empreendedorismo ligado à valorização dos produtos da biodiversidade, na produção e no consumo (na gastronomia, por exemplo) vem sendo incentivado por organizações como o Centro de Empreendedorismo da Amazônia.
O diálogo entre atores sociais que até recentemente estavam distantes entre si intensifica-se e não só num horizonte de defesa contra a barbárie, mas sobretudo em torno de propostas construtivas.
Neste contexto ganha especial importância o recente trabalho do Instituto Escolhas, “Impulsionando o desenvolvimento sustentável do Amazonas”, apresentado há alguns dias na Comissão Especial de Reforma Tributária da Câmara dos Deputados. Vincular este arco de forças sociais ligadas à emergência da bioeconomia aos desafios de um novo modelo de crescimento econômico da região - e particularmente aos desafios da Zona Franca de Manaus - é a principal originalidade da contribuição do Instituto Escolhas.
Por mais importante que seja hoje a Zona Franca de Manaus, o documento mostra que ela padece de quatro problemas centrais: promove alocação ineficiente de fatores, distorce mercados e cadeias produtivas, seus incentivos não estão condicionados a metas públicas e seus beneficiários são completamente dependentes de subsídios.
Os ganhos sociais destes subsídios são pífios. Mas o mais importante no trabalho do Escolhas é o vínculo entre a bioeconomia e três outras dimensões estratégicas para o Estados do Amazonas e para a região.
Em primeiro lugar, é possível e necessário fazer da Zona Franca de Manaus um polo da economia de transformação digital. A tão almejada junção entre tecnologias contemporâneas e conhecimentos tradicionais, não se viabiliza sem Internet de alta qualidade.
A terceira dimensão estratégica (além da bioeconomia e da transformação digital) é o ecoturismo, atividade que, no mundo, cresce 15% ao ano e que poderia ser muito maior do que é no Brasil. A quarta dimensão é a piscicultura de água doce. Pouca gente sabe que o pescado é a principal proteína animal na produção e no comércio globais. A atividade é muito menos emissora de gases de efeito estufa que a criação de gado e exige área correspondente a 3% da necessária à oferta do equivalente em carne.
Tudo isso supõe, é claro, infraestrutura. Mas não se trata fundamentalmente de construir estradas e portos para o embarque de grãos e carnes e sim de uma infraestrutura voltada ao desenvolvimento sustentável, que fortaleça as cadeias produtivas e as oportunidades de os povos da floresta e os empreendedores da Amazônia participarem da emergência da bioeconomia. O estudo do Escolhas sintetiza esta aspiração mostrando inúmeras vantagens de converter a Zona Franca de Manaus numa espécie de “Vale do Silício da bioeconomia”. Esta orientação supõe, claro, o fortalecimento das organizações científicas locais, seu vínculo com os povos da floresta e um processo educativo que valorize o patrimônio cultural de uma região onde se fala mais de duzentos idiomas.
A bioeconomia é o caminho mais acessível para que o Brasil deixe o triste lugar que hoje ocupa como retaguarda da inovação tecnológica global. Trilhar este caminho com o protagonismo dos povos tradicionais, das ONGs que com eles atuam, dos cientistas que lá estudam os serviços ecossistêmicos da floresta e dos empresários comprometidos com inovação e sustentabilidade é o grande objetivo de um conjunto de forças que já começa a compor um movimento social para que a Amazônia se converta em vetor de aproveitamento racional de nossas maiores riquezas.
*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via).
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