Folha de S. Paulo
País sempre cedeu ao seu maior delinquente. Se punido agora, está barato
Não é só o curriculum
vitae de pessoa cruel, incivil e indecorosa, que exibe indignidade com
orgulho e raiva. Não é só a biografia de cultivo da violência contra todo apelo
por liberdade e inclusão. Contra qualquer interesse não privado e familiar.
Se você está desconfiado da delação de Mauro
Cid, como se tijolinho de barro fosse alicerce do arranha-céus de provas contra
Bolsonaro; se leu notas de imprensa céticas à denúncia da PGR, versão
palpiteira e diletante de garantismo; se fica admirado com a coragem moral da
advocacia bolsonarista para dizer o que diz, renove a biblioteca e acione a
memória.
A delinquência foi documentada e televisionada. A tentativa de golpe veio também na forma impressa, à moda de Jair. Coisa tão grande que alguns se recusam a ver. A sociologia chamou essa atrofia sensorial de cegueira supraliminar.
A biblioteca tem três estantes. A primeira
guarda a bibliografia militar, cuja referência é "O
Cadete e o Capitão: a Vida de Bolsonaro no Quartel", de Luiz Maklouf.
Conta do plano de atentado na adutora do Guandu e da absolvição fraudulenta
pelo STM, que ignorou laudo grafotécnico.
Na segunda, a bibliografia parlamentar. Reúne
casos de quebra de decoro e ações criminais no STF em razão de: defesa do
fechamento do Congresso e do fuzilamento de
FHC, ameaça de agressão física a assessora parlamentar, agressão
verbal a Preta Gil e física a Randolfe Rodrigues, incitação ao
estupro, ode
à tortura e ao maior torturador da ditadura, leniência de Michel Temer, rachadinhas. Inclua os podcasts
Retrato Narrado, de Carol Pires, e A Vida Secreta de Jair, de Juliana Dal Piva.
Na terceira, a presidencial. O governo que
existiu em permanente estado de flagrância tem duas prateleiras principais:
crimes contra a vida e a saúde pública; crimes contra a liberdade democrática.
Para não falar em corrupção.
São peças produzidas não pela esquerda com
sede de vingança, mas pela cidadania, famílias de vítimas, advogados,
autoridades: representações ao Tribunal Penal Internacional; pedidos de
impeachment (e o chamado "superpedido"); relatório
da CPI da Covid; representações criminais arquivadas liminarmente por
Augusto Aras; ação civil pública contra a Jovem Pan, por construção dolosa do
caldo desinformacional em ataque à democracia; denúncia criminal da PGR.
Graças a Aras, a Lira e até a Gonet, que
deixou muito na gaveta para se concentrar nos crimes de 8 de janeiro, virou
pechincha. Crimes da pandemia foram disfarçadamente anistiados. Tradição de
nossas casas de tolerância à delinquência política.
Todos temos direito de dizer que nada disso é
crime, apenas exercício da liberdade patriota. Assim como todos temos direito
de ser idiotas. O sistema de justiça tem dever de proteger o exercício do
direito à idiotia. Só não pode confundir paixão com inocência, servidão
voluntária com legalidade.
Há casos juridicamente difíceis e
politicamente fáceis. A denúncia contra a cúpula do golpe é o contrário. Não
pede superpoderes analíticos, só coragem de juízes e integridade de
comentaristas.
Bolsonaristas chamaram de "reedição do
Tribunal de Nuremberg". Sorte que o direito penal desconsidera ato falho.
Hannah Arendt notou em Eichmann a banalidade do mal. Estamos assistindo à
banalidade da ignorância.
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