O Globo
Lula começa a encarnar o defensor dos
eleitores de classes média e baixa, como fez em 2006
Exatamente há 20 anos, Lula estava mergulhado
na mais grave crise de seu primeiro mandato. O mensalão havia sido denunciado
por Roberto
Jefferson em meados de junho. O mês de julho começava com dirigentes
do PT afastados e novas revelações sobre o operador Marcos Valério.
Inicialmente, Lula tentou minimizar a crise, afirmando que o PT repetira o que
sistematicamente era feito no Brasil. Dias depois, tirou a cabeça d’água e
sentenciou:
— Não vai ser a elite brasileira que vai me
fazer baixar a cabeça.
Lula sangrou, se recuperou e venceu a eleição de 2006. O “nós contra eles” foi uma das marcas de seu governo após o mensalão, a ponto de, em 2010, ele pregar que o DEM, à época o mais aguerrido partido de oposição, fosse “extirpado” da política brasileira. A volta do petista ao poder em 2022 envolveu uma guinada de discurso, proporcionada pelo radicalismo bolsonarista. Lula buscou apoio de ex-tucanos e navegou na promessa de conciliação nacional e defesa da democracia. Com Bolsonaro inelegível e centenas de golpistas condenados, essa agenda já não tem o mesmo apelo.
A atual gestão, marcada pela reembalagem de
velhos programas de parcos resultados, se tornou alvo fácil para uma oposição
mais radical e competente, especialmente no mundo virtual. No Congresso, cuja
maioria é formada por parlamentares de partidos da centro-direita, a
animosidade contra seu governo cresce de forma inversamente proporcional à sua
popularidade. Foi justamente depois de sofrer a mais acachapante derrota desta
gestão no Parlamento que o governo conseguiu se mobilizar, sair das cordas e
emparedar os opositores.
As mudanças feitas pela Fazenda no IOF tinham
escancarada finalidade arrecadatória e não promoviam justiça tributária. Mas a
decisão do Congresso de derrubá-las e, ao mesmo tempo, aumentar o número de
deputados e atender a interesses privados que custarão R$ 35 bilhões por ano na
conta de luz dos brasileiros permitiu que a esquerda encontrasse um discurso e
retomasse o debate sobre quem está ao lado da maioria da população e quem
defende os privilegiados. Ontem, Donald Trump ofereceu a Lula mais uma carta: a
defesa do interesse nacional contra os que se ajoelham ante o imperialismo
americano.
O núcleo do embate econômico está
representado na reforma do Imposto de Renda. A proposta de Fernando
Haddad é de fácil compreensão: trabalhadores que recebem até R$ 5 mil
por mês ficam isentos de IR, e essa conta será paga com a tributação em 10% da
renda total de quem ganha mais de R$ 100 mil por mês — com uma alíquota
intermediária para quem recebe a partir de R$ 50 mil. A Receita estima que essa
nova tributação incidirá sobre um diminuto grupo de aproximadamente 140 mil
brasileiros, em geral beneficiários da isenção dada aos lucros e dividendos de
empresas. A expectativa é que eles contribuam com a mesma alíquota efetiva paga
hoje por um trabalhador que tenha salário de R$ 6 mil.
A usina de desigualdade tributária brasileira
é um dos pouquíssimos pontos capazes de unir perfis tão diversos quanto Haddad
e Paulo
Guedes. É um modelo que, no Brasil, permite a médicos e advogados renomados
pagar menos impostos que suas secretárias. A proposta de isenção de IR até R$ 5
mil estava na plataforma eleitoral tanto de Lula quanto de Bolsonaro. Quando
esteve à frente do Ministério da Economia, Guedes tentou aprovar a taxação de
lucros e dividendos e pregava:
— Não pode ter vergonha de ser rico, tem que
ter vergonha de não pagar imposto.
Em vão.
Não será simples para Lula sustentar o
confronto com o Congresso até o fim de seu mandato. A população quer resultados
práticos, e boa parte das políticas públicas depende de aprovação no
Parlamento. Além disso, acusar outro poder de ser “inimigo do povo” ecoa os
piores traços do golpismo bolsonarista. No entanto, depois de dois anos e meio
de uma gestão apática — que leva a maior parte dos brasileiros a desejar que
Lula não se candidate —, o governo parece finalmente ter um discurso.
Ao contrário do “paz e amor” de 2002 e do
“defensor da democracia” de 2022, o personagem que começa a ser encarnado para
o próximo ano é parecido com o de 2006: o defensor dos eleitores de classes
média e baixa, grupo em que a direita avançou intensamente na última década. É
impossível prever se a estratégia que 20 anos atrás derrotou Geraldo
Alckmin, recém-saído do governo de São Paulo, dará certo novamente. Mas, de
volta ao centro do ringue e com Trump atacando o país, não será surpresa se
outro opositor acabar vestindo uma jaqueta de empresas estatais para jurar que
não entregará a pátria.
*Paulo Celso Pereira é editor executivo do
GLOBO
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