quinta-feira, 10 de julho de 2025

Quando a ideologia supera a razão econômica - Dani Rodrik*

Valor Econômico

O ‘belo e grande’ plano fiscal de Trump subverteu o pensamento convencional de que as decisões políticas tendem a se concentrar nos custos e benefícios econômicos

Entre os desastres do “grande e belo projeto de lei” fiscal de Donald Trump, há um que é particularmente doloroso para os economistas políticos. O projeto de lei elimina radicalmente os subsídios para as fontes de energia limpa adotados durante o governo do presidente Joe Biden há três anos. Muitos consideravam esses subsídios imunes a mudanças de presidentes, uma vez que eles criaram novos empregos e oportunidades de lucro para empresas em Estados “vermelhos”, como são conhecidos os que costumam votar mais no Partido Republicano. Por mais alérgico que o Partido Republicano controlado por Trump seja às políticas verdes, a legenda não ousaria tirar esses benefícios, dizia o pensamento convencional. Só que ousou.

Onde o pensamento convencional errou? Acadêmicos que estudam como as decisões políticas são feitas tendem a concentrar-se nos custos e benefícios econômicos. Pela lógica deles, leis que criam ganhos materiais para grupos organizados, bem relacionados, à custa de perdas difusas para o resto da sociedade têm mais chances de aprovação. Muitos elementos do projeto de lei de Trump, de fato, podem ser bem explicados por esse ponto de vista: em particular, o projeto engendra uma dramática transferência de renda para os mais ricos, à custa dos mais pobres.

Na mesma toada, leis que trazem perdas concentradas para interesses econômicos poderosos têm poucas chances de avançar. Isso explica, por exemplo, por que elevar o custo das emissões de carbono, uma exigência para combater as mudanças climáticas, mas um grande golpe para os interesses dos combustíveis fósseis, tem sido um entrave politicamente tóxico nos Estados Unidos.

O programa de energia limpa de Biden, chamado de Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), foi concebido para superar esse obstáculo político. Em vez de valer-se de “punições” (a taxação das emissões de carbono), ofereceu “incentivos”, na forma de subsídios às energias solar e eólica e a outras fontes renováveis. Esses incentivos não só tornaram a IRA viável; esperava-se que a tornassem duradoura. Mesmo se os republicanos voltassem ao poder, os beneficiários dos subsídios resistiriam contra sua retirada. Com o tempo, à medida que os lobbies verdes se fortalecessem, talvez até um ataque direto aos combustíveis fósseis se tornasse politicamente possível.

Tais esperanças foram estilhaçadas. Os grupos lobistas verdes tentaram suavizar as cláusulas da nova lei contrárias à IRA e conseguiram adiar a eliminação dos créditos fiscais para energia solar e eólica até meados de 2026. Embora a IRA não tenha sido revogada por completo, a transição verde esperada pelos democratas agora está em frangalhos.

Aqueles que seguem uma visão materialista da economia política encontrarão formas de racionalizar esse retrocesso. Os cortes de impostos regressivos para os ricos exigiam encontrar receitas em outros lugares. Dessa forma, talvez um grupo de interesse menos influente tenha sido sacrificado em favor de um mais poderoso, ou talvez três anos não tenham sido tempo suficiente para que os subsídios da IRA criassem um lobby forte o bastante a seu favor. Como disse um defensor da lei: “Nunca saberemos, mas se tivéssemos mais quatro anos para esses investimentos na indústria se consolidarem, seria muito mais difícil para os parlamentares desfazê-los”.

Em última análise, entretanto, essas justificativas soam falsas. Precisamos aceitar que, às vezes, a ideologia se sobrepõe aos interesses materiais. Não pode restar grande dúvida de que muitos parlamentares republicanos votaram contra os interesses econômicos dos próprios eleitores. Alguns o fizeram por medo de retaliação por parte de Trump; outros, porque realmente são céticos quanto às mudanças climáticas e, assim como Trump, se opõem a qualquer coisa que cheire a ativismo verde. Seja como for, o que prevaleceu foram as ideias sobre o que é importante e sobre como o mundo funciona, e não os lobbies econômicos ou interesses estabelecidos.

Precisamos aceitar que, às vezes, a ideologia se sobrepõe aos interesses materiais. O domínio da narrativa é hoje uma arma poderosa, que consegue convencer as pessoas a fazer escolhas que parecem estar em conflito com os próprios interesses econômicos

Há aqui uma lição mais ampla sobre economia política. Narrativas podem ser tão importantes quanto as políticas de grupos de interesse para dar tração à agenda de um partido. A capacidade de moldar visões de mundo e ideologias - tanto das elites quanto dos eleitores comuns - é uma arma poderosa. Quem a domina consegue convencer as pessoas a fazer escolhas que parecem estar em conflito com os próprios interesses econômicos.

Na verdade, os próprios interesses, sejam econômicos ou de outro tipo, são moldados por ideias. Para saber se ganhamos ou perdemos com uma determinada política, precisamos entender como ela se desenrolará no mundo real, e também o que ocorreria na ausência dela. Poucos de nós têm o conhecimento ou a inclinação para fazer esse tipo de análise. As ideologias oferecem atalhos para esse processo de tomada de decisão tão complexo.

Algumas dessas ideologias se manifestam na forma de histórias e narrativas sobre como o mundo funciona. Um político de direita, por exemplo, poderia dizer que “intervenções do governo sempre saem pela culatra” ou que “universidades de elite produzem conhecimento tendencioso e não confiável”. Outras ideologias se concentram em aumentar a proeminência de certos tipos de identidade - étnica, religiosa ou política. Dependendo do contexto, a mensagem poderia ser: “os imigrantes são seus inimigos” ou “os democratas são seus inimigos”.

É importante notar que o próprio conceito de “interesse próprio” depende de uma ideia implícita sobre quem é esse “eu”: quem somos, o que nos diferencia dos outros e qual é nosso propósito. Essas ideias não são fixas nem naturais desde o nascimento. Uma tradição alternativa na economia política vê os interesses como construções sociais, e não como algo determinado pelas circunstâncias materiais. Dependendo de como nos identificamos, seja como “homem branco”, “classe trabalhadora” ou “evangélico”, por exemplo, veremos nossos interesses de formas diferentes. Como poderiam dizer os construtivistas, “interesse é uma ideia”.

Há aqui uma lição para os opositores de Trump. Para ter sucesso, não basta criar boas políticas públicas que tragam benefícios materiais para grupos específicos. Seja para combater a mudança climática, promover a segurança nacional ou gerar bons empregos, eles precisam vencer a batalha maior das ideias, particularmente das ideias que moldam a compreensão que os eleitores têm de quem eles são e de quais são seus interesses. Os democratas, em particular, precisam reconhecer que as narrativas e identidades que promoveram até recentemente deixaram muitos americanos comuns para trás, assim como as políticas econômicas anteriores a Biden que contribuíram para a ascensão de Trump. (Tradução de Sabino Ahumada)

*Dani Rodrik é professor de economia política internacional na Harvard Kennedy School, foi presidente da International Economic Association e é autor do livro a ser publicado “Shared Prosperity in a Fractured World: A New Economics for the Middle Class, the Global Poor, and Our Climate” (Princeton University Press, novembro 2025).
Copyright: Project Syndicate, 2025.
www.project-syndicate.org

 

Nenhum comentário: