O Globo
Trump quer impor sua pós-verdade, ao mundo e
acusa o governo brasileiro de promover perseguição a Bolsonaro e a sua família
por razões políticas
Se fosse um político americano, Jair Bolsonaro poderia disputar as eleições presidenciais mesmo tendo sido condenado e governar de dentro da cadeia. Como Bolsonaro não é americano, não poderá nem disputar a campanha presidencial do ano que vem, muito menos governar tendo sido condenado. Foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder político, pois usou as dependências de um palácio presidencial para divulgar mentiras sobre as urnas eletrônicas, mandando a televisão estatal transmitir a reunião com embaixadores estrangeiros em que fez tais acusações.
Trump não foi acusado pela convulsão popular
que levou à invasão do Capitólio em Washington para tentar impedir a posse de
seu adversário Joe Biden (houve até morte), porque foi eleito presidente, e a
Constituição americana o protege. Bolsonaro é julgado por tentativa de golpe
institucional e instigação à baderna ocorrida em 8 de janeiro de 2023 na Praça
dos Três Poderes, em Brasília. Crimes contra a democracia em tudo semelhantes,
decisões judiciais distintas. Como se considera um “imperador” mundial, Trump
quer impor sua interpretação dos fatos, sua pós-verdade, ao mundo e acusa o
governo brasileiro de promover perseguição a Bolsonaro e a sua família por
razões políticas.
Ele não procurou saber o que se passa nesta
democracia abaixo do Equador. Baseia-se na narrativa do deputado licenciado
Eduardo Bolsonaro. Como tudo pode, escreveu e assinou uma carta dizendo que o
aumento tarifário decretado ontem, de 50% sobre os produtos brasileiros, é uma
punição pela atitude política do governo brasileiro contra Bolsonaro. Não será
surpresa se, nos próximos dias, novas punições vierem a ser anunciadas,
inclusive contra o ministro do STF Alexandre de Moraes.
A mistura de tarifas econômicas com sanções
políticas é novidade neste governo Trump. Até hoje ele não tinha dado caráter
político ao aumento tarifário. Como o Brasil tem relação deficitária com os
Estados Unidos, deveria permanecer fora das punições mais rigorosas, mas a
questão política falou mais alto. Toda essa movimentação deve-se ao amor de
Trump pelos Bolsonaros? Ou à democracia? Claro que não. Deve-se à ação do
Brasil na presidência do Brics, bloco do Sul Global com pretensão a ser o
contraponto dos países em desenvolvimento à política controlada pelos países
mais ricos, que dominam as organizações multilaterais mais importantes, como
ONU, OMC ou OMS.
Como nada indica que o Brics terá força
política no curto prazo para fazer frente aos Estados Unidos, mesmo tendo entre
seus fundadores a China, o mais provável é que Trump esteja tentando frear uma
iniciativa que parece ser viável a longo prazo: a adoção de uma moeda única
entre os países do Brics, para que possam abrir mão do dólar como moeda de
referência comercial. Mesmo que seja difícil chegar a essa solução, a
possibilidade de haver comércio entre esses países com moedas próprias é um
perigo para a fortaleza econômica dos Estados Unidos.
Os reflexos da decisão de Trump na nossa
economia interna são presumíveis. Aumenta a dificuldade de crescimento
econômico. Mas as consequências políticas são discutíveis. Aparentemente, a
amizade entre Bolsonaro e Trump traz o caos ao país, e isso pode ser um tiro no
pé para o ex-presidente e seu grupo. Um ex-presidente que se embrulhava na
bandeira nacional para exibir patriotismo e dizia que nossa bandeira nunca
seria vermelha agora aparece como puxa-saco de um governo autoritário dos
Estados Unidos, que decide sanções com consequências péssimas para nosso país.
A bandeira dos Bolsonaros passou a ser a Stars and Stripes dos americanos?
Antecipando-se, porém, o senador Flávio
Bolsonaro já mandou uma mensagem pelo X tachando a posição da política externa
brasileira de antiamericana, responsável pela crise anunciada, com perda de
milhões em investimentos e empregos. A interferência de Trump não terá nenhum
efeito prático no julgamento de Bolsonaro no Supremo. Imaginar que seria capaz
de mudar o resultado do julgamento com sua defesa de Bolsonaro é primário, não
acredito que Trump seja politicamente inepto a esse ponto. Bolsonaro é apenas
um pretexto. O governo Lula caminha em sua política externa por um desvio à
esquerda perigoso, em certos momentos se coloca como antagonista do mundo
ocidental. A ação do Brics, mesmo que incipiente, é o que o incomoda, embora
Trump não tenha o direito de interferir na política interna de uma democracia.
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