O Estado de S. Paulo
Sem ação firme e coordenada, as apostas continuarão transformando promessas vazias em tragédias reais
No final de 1945, num discurso histórico no Parlamento britânico, Winston Churchill fez um alerta sobre os perigos dos vícios numa sociedade abalada pela Segunda Guerra Mundial: “Os vícios nos jogos de azar são pagos com a moeda da dor e do sofrimento humano.” Naquele momento, o Reino Unido enfrentava um aumento preocupante do vício em jogos de azar, que corroía o tecido social e desviava o foco da reconstrução e do apoio mútuo entre os cidadãos. Décadas depois, suas palavras ecoam no Brasil, onde o crescimento desenfreado das apostas esportivas transformou o jogo num mecanismo de exclusão social. O setor explora os mais vulneráveis e aprofunda desigualdades, comprometendo o futuro de famílias inteiras.
O impacto das apostas esportivas vai muito
além dos números. Como mostrou a revista Piauí em reportagem recente, as
plataformas de jogos digitais têm destruído a vida de muitas famílias
brasileiras. Um exemplo é o de uma corretora de imóveis que perdeu R$ 2 milhões
num ciclo de endividamento causado pelas apostas. Forçada a vender bens e
contrair empréstimos, ela viu sua estabilidade financeira ruir, comprometendo
até o sustento básico de sua família. Casos como esse deixam claro que o jogo,
vendido como entretenimento, rapidamente se transforma numa armadilha que
explora os mais vulneráveis, arruinando economias familiares e desestruturando
lares.
As consequências econômicas também são
profundas. Em 2024, as apostas digitais movimentaram cerca de R$ 130 bilhões,
segundo o setor. Estima-se que R$ 500 milhões desse montante vieram de
beneficiários do Bolsa Família, programa que deveria garantir segurança
alimentar às famílias mais pobres. O desvio de renda para apostas digitais não
apenas amplia a vulnerabilidade econômica, mas também altera padrões de
consumo, com retração de 1,3% nas vendas no varejo, segundo a Confederação
Nacional do Comércio (CNC), especialmente em itens essenciais como alimentação
e vestuário.
A atuação dos lobistas no Congresso foi
exposta de forma ainda mais evidente nas últimas semanas de 2024. Uma proposta
desarrazoada para regulamentar jogos de azar presenciais, como bingos, cassinos
e jogo do bicho, foi pautada no plenário do Senado antes mesmo da conclusão da
CPI das Bets. A tentativa de avançar com tal medida, sem aguardar os efeitos da
regulamentação das apostas online, é um total disparate.
A CPI, por sua vez, terminou de forma
decepcionante. Apesar das promessas iniciais, não foi capaz de oferecer
respostas à altura da gravidade do problema. A frustração com a ausência de
responsabilizações concretas só reforça o sentimento de impotência diante de um
setor que avança sem freios e com forte lobby político.
Ao longo dos últimos anos, tenho alertado,
neste espaço, sobre os profundos impactos sociais causados pelo jogo, com base
em fatos documentados, números alarmantes e tragédias pessoais. Em todos os
casos, ficou evidente como as promessas de progresso associadas às apostas se
revelam frágeis e ilusórias. Agora, diante desse avanço no Senado e do
esvaziamento da CPI, reafirmo: o setor tem explorado a vulnerabilidade dos
brasileiros, agravando desigualdades e promovendo exclusão social.
Os impactos psicológicos também são
alarmantes. Centros de saúde relatam um aumento expressivo na procura por
tratamento de vício em jogos. As plataformas utilizam mecanismos psicológicos
que estimulam a compulsão, como prêmios instantâneos, gráficos coloridos e uma
interface que mantém o jogador constantemente engajado. No Reino Unido, onde o
setor de apostas é fortemente regulado, campanhas públicas alertam para os
riscos e limitam a publicidade dirigida a menores. No Brasil, ao contrário, a
publicidade incessante e agressiva, muitas vezes protagonizada por
influenciadores digitais, normaliza o comportamento compulsivo, especialmente
entre jovens.
Casos de adolescentes endividados e
dependentes de apostas digitais se tornam cada vez mais frequentes. É uma
geração sendo moldada por práticas predatórias, sem barreiras nem fiscalização
adequadas. A facilidade de acesso a aplicativos e a onipresença das campanhas
publicitárias tornam os menores de idade alvos fáceis para um sistema que lucra
com o descontrole.
O Brasil já viu esse filme. Lobistas
continuam vendendo ilusões de progresso enquanto ignoram os danos profundos que
o jogo causa. Ao afirmar que “os vícios são pagos com a moeda da dor e do
sofrimento humano”, Churchill destacou um perigo que transcende gerações. A
verdade proferida nesta frase continua tão relevante hoje quanto era na época.
Cabe a nós impedir que essa realidade continue a se repetir. É urgente que o
Congresso recue da tentativa de legalizar os jogos de azar presenciais e que o
País adote medidas eficazes para mitigar os danos sociais e econômicos da
jogatina. Sem ação firme e coordenada, as apostas continuarão transformando
promessas vazias em tragédias reais. •
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