O Estado de S. Paulo
Hoje, tiranos e ladravazes, desde que vencedores, não são mais objeto de repúdio, mas de adoração
A confiança virou pó. Não se pode acreditar
em mais ninguém. A boa-fé não existe, a não ser como fachada. A honestidade se
reduz a uma reles desculpa para o fracassado: é a única virtude da qual o pobre
pode se orgulhar e, pior, é da boca para fora.
Só vai enriquecer quem souber substituir a palavra “amor” pela palavra “interesse”. Todos os ricos são crápulas. Na classe dominante, só não é calhorda quem sofre dos nervos: as madames alcoólatras e as socialites deprimidas. O único trabalho verdadeiramente lucrativo é a pilantragem profissional. Os trouxas insistem na integridade. Os trouxas são perdedores.
Se você acha o diagnóstico exageradamente
pessimista, convém dar uma olhada na novela das nove da Rede Globo, Vale Tudo.
O melodrama faz uma radiografia cética da ética escalafobética patrocinada pela
burguesia caquética. E, a julgar pelos rombudos índices de audiência, a
radiografia colou. Há tempos a massa telespectadora não festejava tanto um
folhetim da Globo. Há tempos, uma novela não dava tanto o que pensar. A cada
capítulo, fica mais difícil ter esperanças ufanistas.
O quadro fica mais sombrio quando lembramos
que o aviso não é novo. Na verdade, estamos falando de um aviso repetido. O que
está no ar é um remake. A trama original de Vale Tudo foi exibida no ano
longínquo de 1988, o mesmo da Constituição Cidadã, como a apelidou Ulysses
Guimarães. Puxe pela memória, você vai se lembrar.
Foi um tempo feliz, de buliçosa efervescência
cívica. O Brasil acreditava que, se varresse os corruptos para longe da sala,
abriria caminho para o progresso e para a justiça social. Bastaria expulsar de
Brasília os parasitas, os marajás, os larápios e os tecnocratas fardados. Com
os malfeitores sepultados, o País, finalmente, se reconciliaria com o seu
grande destino.
Naquele clima de deslumbramento, liberação e
euforia, tudo o que os telespectadores queriam era revanche contra as elites
imorais – e para esse continental apetite de acerto de contas, Vale Tudo serviu
de vingança simbólica. A vilã Odete Roitman, interpretada por uma atriz
grandiosa, Beatriz Segall, representava tudo o que havia de mais execrável: ela
manipulava a família, os agregados, os empregados e, de resto, o elenco
inteirinho, sempre destilando desprezo pelos mínimos resquícios de humanidade
em quem quer que fosse. Sentia nojo das tais brasilidades, como pandeiro e
feijoada. Usava e abusava da crueldade. Levou sua maldade a tais extremos que,
no epílogo, terminou assassinada. Por merecimento.
Sua morte foi motivo de júbilo nacional. Foi
até mesmo um divertimento: nos capítulos finais, o público dava risada tentando
adivinhar quem tinha matado a megera chique. A pergunta “Quem matou Odete
Roitman” entrou para o folclore tropical, assim como a execução da
inescrupulosa e fascinante personagem virou um ritual de purificação, um
antídoto contra todas as imundícies.
Ocorre que, ao longo das décadas que vieram
depois, as imundícies voltaram, e voltaram ainda mais imundas. Elas
reapareceram com tanta força que tornaram obrigatório o regresso da bruxa
maquiada de dondoca. Eis então que, em 2025, o bode expiatório está outra vez
no horário nobre. Mas o final que a espera poderá ser diferente.
A velha senhora – remodelada na estampa, mas
intacta no caráter – saiu da tumba para repetir a catarse, desta vez encarnada
na atriz Débora Bloch, cuja interpretação classuda transpira absolutismo
majestoso, imperial. Em sua nova fase, a dama hostil segue ferina: espanca um
subalterno só de olhar para ele e tortura a irmã carente com um quase
imperceptível repuxozinho de canto de boca, como se dissesse que a outra não
lhe merece nem mesmo o trabalho de rir de seu sofrimento sincero, mas vazio.
Sim, Odete está igualzinha. Os tempos, porém,
são outros. Hoje, tiranos e ladravazes, desde que vencedores, não são mais
objeto de repúdio, mas de adoração. A ideologia se sofisticou e opera milagres
funestos. A identificação dos desvalidos com os bilionários sem princípios
chegou a tal ponto que o motoqueiro precarizado sente-se tão empresário quanto
Elon Musk (só lhe falta ganhar algum). Donald Trump, que acaba de tirar um
trilhão de dólares dos serviços de saúde com o apoio do Congresso, desfila como
ídolo dos que nada têm. No Brasil, milhares de eleitores vão às ruas para
aplaudir os que tentaram dar um golpe de Estado. Algo mudou na alma do povo.
Cenário nebuloso. Talvez, hoje, a massa de
telespectadores não deseje mais a morte violenta de Odete Roitman. Talvez
torça, isto sim, para que ela triunfe e dê uma rasteira na moral da história
para acabar de vez com esses bonzinhos insuportáveis que não lhe dão descanso.
A massa, que anda caidinha por opressores, talvez queira que a vigarista, em
vez de ser assassinada, assassine pessoalmente aquele bando de chorões e de
choronas, esquerdosos, previsíveis, chatos e politicamente corretos. Não será
surpresa se os roteiristas tiverem de alterar o desfecho da novela para
conceder, na segunda vida, uma anistia para Odete Roitman.
Nenhum comentário:
Postar um comentário