quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

A Nação, refém do descaso – Opinião | O Estado de S. Paulo

A postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado ao tomar posse como presidente

 A Nação está refém do inconcebível descaso de Jair Bolsonaro pela vida e pela saúde pública, quando, como ocorre em qualquer país normal, deveria ser bem liderada por seu presidente no curso da mais letal emergência sanitária que se abateu sobre o Brasil desde 1918.

Nesta hora grave, a postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado sobre a Constituição ao tomar posse como presidente da República. Aquele que deveria ser o líder de todos os esforços nacionais para acabar com um flagelo que há dez longos meses exaure o espírito de milhões de seus compatriotas, ao contrário, é o primeiro de uma penca de sabotadores desses esforços. E com indisfarçável satisfação.

O País chega a 2021 perto da marca de 195 mil mortos pela covid-19. Jamais tantos brasileiros morreram em tão pouco tempo devido a uma só causa. Angustiada, a Nação assiste ao início da campanha de vacinação contra o novo coronavírus em cerca de 50 países, alguns dos quais em condições econômicas mais adversas que as do Brasil, sem saber quando e como será vacinada. É como se aos que aqui vivem não bastassem as provações já impostas pela pandemia, agregando-se um presidente mequetrefe ao longo rol de infortúnios.

No sábado passado, ao ser questionado por um jornalista se sentia a pressão de ver outros países iniciarem a vacinação de seus nacionais, Bolsonaro reagiu dizendo “não dar bola para isso”, pois “ninguém o pressiona para nada”. É este presidente à prova de “pressões” – até mesmo a pressão para salvar vidas – que, como se não tivesse múltiplas crises para debelar, encontrou tempo para jogar futebol, debochar de adversários políticos, criticar os laboratórios que fabricam as vacinas e ofender a ex-presidente Dilma Rousseff, entre outros absurdos. Parece claro que Jair Bolsonaro está mais preocupado em desviar as atenções do País de sua irremediável incompetência do que em viabilizar o início de uma campanha de vacinação sem a qual mais brasileiros vão morrer e mais preso a este pesadelo estará o País.

Bolsonaro é um presidente sui generis. Em sua cruzada antivacina, destoa até mesmo de líderes aos quais sempre demonstrou ter profunda admiração, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu. Ambos não foram tão longe a ponto de questionar a segurança das vacinas e mobilizaram seus governos para conseguir o maior número de doses para seus nacionais no menor tempo possível. Líderes de direita e de extrema direita com os quais o presidente brasileiro mantém afinidades ideológicas – como os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Hungria, Viktor Orbán, também fizeram planos para adquirir vacinas.

No início da segunda metade de seu mandato, Jair Bolsonaro ainda não tem um plano para amparar os desvalidos que deixarão de receber o auxílio emergencial, não tem um plano para destravar a economia e gerar empregos e, não menos importante, não tem um plano para vacinar toda a população. Não há saída possível para a crise que paralisa o Brasil que não passe por uma rápida e eficaz imunização contra a covid-19.

A Nação vê-se perdida em meio à falta de informações ou à comunicação vacilante das ditas autoridades. As duas vacinas mais próximas dos brasileiros, a Coronavac, fruto da parceria entre o Instituto Butantan e a chinesa Sinovac Life Science, e o imunizante da AstraZeneca e da Universidade de Oxford, que será produzido no Brasil pela Fiocruz, ainda são meras promessas. Até o momento, não se sabe exatamente qual a eficácia da primeira. E erros metodológicos atrasaram a conclusão dos testes de fase 3 da segunda.

Não se esperava que o Brasil fosse um dos primeiros países a vacinar seus cidadãos. Afinal, havia países mais desenvolvidos com condições de sair na frente em suas campanhas de vacinação. Tampouco condiz com a grandeza do País não haver sequer previsão segura do início da imunização por aqui. E não há porque Bolsonaro nunca quis que houvesse.

A inépcia documentada – Opinião | O Estado de S. Paulo

Relatórios do TCU são o registro histórico da inépcia de Bolsonaro para lidar com pandemia

Desde o início da pandemia de covid-19, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem produzido uma série de relatórios de acompanhamento das ações do governo federal para enfrentar a emergência sanitária e seus desdobramentos sociais e econômicos. Ao lado dos registros da imprensa, dos anais do Congresso, dos livros já publicados e dos que ainda serão escritos, esses documentos do TCU constituem o registro histórico da mais absoluta inépcia do presidente Jair Bolsonaro para lidar com uma tragédia que já matou quase 190 mil de seus compatriotas.

A leitura atenta desses relatórios elaborados pela Corte de Contas não deixa dúvida de que, além da mais severa crise sanitária desde 1918, a Nação se vê às voltas com o mais despreparado presidente da República na história recente do País. Bolsonaro, logo de saída, desdenhou da gravidade da covid-19 – nada mais do que uma “gripezinha”. O que se viu a partir de então foi um funesto desdobramento do misto de negação, arrogância e incompetência do presidente nas ações de seu governo para combater a pandemia.

No mais recente relatório de acompanhamento do TCU, divulgado há dias, o ministro Benjamin Zymler diz claramente que, ao analisar documentos e ações do governo federal, é incapaz de enxergar “um planejamento do Ministério da Saúde minimamente detalhado para o combate à pandemia”. Trata-se do quarto relatório elaborado pela Corte de Contas. O quarto. O mundo se aproxima do décimo mês de pandemia, com evidentes sinais de crescimento descontrolado do número de casos e mortes. E o Ministério da Saúde, no entendimento do ministro e de qualquer pessoa razoavelmente informada, ainda não foi capaz de elaborar um plano de combate à pandemia “minimamente detalhado”.

Em julho, convém lembrar, o TCU já havia “sugerido” ao Ministério da Saúde algumas ações para “correção de rumos” no enfrentamento da pandemia (ver editorial A tragédia dentro da tragédia, publicado em 24/7/2020). Ao que tudo indica, no geral, foi ignorado.

Diante do absurdo que é a falta de um plano estruturado para lidar com a crise do novo coronavírus a esta altura dos acontecimentos, o ministro Zymler registrou o óbvio por escrito, asseverando que “o planejamento governamental é importante para a execução de qualquer política pública, mesmo aquelas relacionadas ao enfrentamento de uma situação de emergência”. Seria de constranger qualquer governante minimamente cioso de suas responsabilidades, mas é de Bolsonaro que se trata.

O apequenamento do Ministério da Saúde e a gestão errática da crise sanitária após a demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta resultam da abordagem mesquinha da pandemia por Bolsonaro, que a vê mais como uma oportunidade de fazer campanha política e inflamar seus apoiadores radicais do que como um gravíssimo problema de saúde pública a merecer a ação firme do presidente da República. Isto não está dito nos relatórios do TCU, mas é o que deles se depreende.

Caso Bolsonaro estivesse determinado no propósito de resguardar a saúde dos brasileiros, não haveria, por exemplo, milhões de kits de testes para covid-19 apodrecendo nos galpões do governo federal em Guarulhos. Cerca de 17 milhões dos 20 milhões de máscaras adquiridas pelo governo em março já teriam sido enviadas para hospitais e postos de saúde País afora. Tampouco faltariam sedativos fundamentais para a intubação dos pacientes mais graves. Por fim, não haveria descompasso entre a compra de milhões de seringas e agulhas e as tratativas para aquisição de vacinas para a população, como apontado pelo TCU no relatório mais recente.

Os relatórios do TCU deixam claro que os efeitos da pandemia poderiam ter sido bem menos graves caso o governo federal – em particular o Ministério da Saúde – exercesse o papel de coordenação dos esforços nacionais para enfrentamento da crise. Ao ignorar essa responsabilidade, deixa o País à própria sorte. 

Ao menos o descaso está documentado.

Desafios para a biodiversidade – Opinião | O Estado de S. Paulo

Se perder a janela de oportunidades, Brasil atrairá o opróbrio internacional

A pandemia de covid-19 expôs agudamente os riscos do desequilíbrio crônico na relação entre os seres humanos e a natureza. É um lembrete mortífero das possíveis consequências da contínua degradação dos ecossistemas globais.

A fim de frear a perda de biodiversidade, a comunidade internacional adotou em 2010 o Plano Estratégico de Biodiversidade 2011-2020 de Aichi. Segundo a avaliação da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, detalhada no seu Panorama da Biodiversidade Global, de lá para cá houve um progresso sensível, mas insuficiente.

Entre os avanços que merecem destaque está a redução significativa da taxa de desmatamento: cerca de um terço em comparação com a década anterior. Também houve uma expressiva expansão de áreas protegidas: entre 10% e 15% na terra e 3% e 7% no mar entre 2000 e 2020. Em relação às “áreas-chave” para a biodiversidade o crescimento foi ainda maior: de 29% a 44%.

Além das áreas protegidas, o número de extinções foi reduzido por uma série de medidas, como restrições à caça e a regeneração da biodiversidade por meio da reintrodução de espécies perdidas e o controle da invasão de espécies alienígenas aos biomas. Sem essas medidas, estima-se que a extinção de pássaros e mamíferos na década passada teria sido duas a quatro vezes maior.

O Panorama aponta oito áreas de transição interdependentes para um futuro sustentável: conservação de florestas e o bom uso das terras; a garantia dos fluxos de água fresca para a natureza e para os humanos; proteção dos ecossistemas marinhos e a pesca sustentável; agricultura sustentável; diversidade e segurança alimentar; infraestrutura verde para as cidades; processamentos industriais baseados em soluções naturais e transição dos combustíveis fósseis para os verdes; e uma abordagem sanitária integrada para promover ambientes naturais e humanos saudáveis.

O Brasil, guardião de uma das maiores biodiversidades do mundo e uma potência agropecuária, pode exercer um protagonismo decisivo. Dada a importância que a questão ambiental assumiu aos olhos do mundo, perder essa janela de oportunidades não o deixará só numa posição de neutralidade, mas atrairá o opróbrio internacional. Sua responsabilidade é grande e a missão é nobre. Cumpri-la exigirá grandes investimentos na técnica (pesquisa e desenvolvimento), mas, sobretudo, um debate público bem informado e equilibrado.

Após 200 anos de revolução industrial, a última geração abriu os olhos e o coração para a ameaça ao meio ambiente. Algum grau de hipersensibilidade ao problema, ainda que não inevitável, é natural. Aqui e ali se nota certo desequilíbrio entre as ideias e os fatos; as intenções e as práticas; as ameaças e os temores.

O próprio Panorama da ONU é um exemplo. Seus autores o abrem com palavras de ordem ameaçadoras e alarmantes: “A humanidade está parada numa encruzilhada em relação ao legado para as futuras gerações. A biodiversidade está declinando a uma taxa sem precedentes, e as pressões que orientam esse declínio estão se intensificando”. Mas, apenas alguns parágrafos adiante, o próprio Panorama cataloga evidências que temperam – quando não contradizem – essas advertências tão aterradoras.

O declínio, é verdade, continua, e, a rigor, nenhuma das 20 Metas de Biodiversidade de Aichi foi plenamente atingida. Seis, contudo, foram parcialmente atingidas. O detalhe é mais animador: dos 60 elementos específicos que compõem as Metas, 7 foram totalmente cumpridos e em 38 houve progresso. Apenas em 13 elementos não houve qualquer progresso – em um ou outro houve um efetivo afastamento da meta –, e dois não puderam ser mensurados. Assim, se o progresso foi insuficiente, ao menos não houve retrocessos expressivos. Dizer, portanto, que a humanidade está “parada numa encruzilhada” pode ter um valor motivacional, mas não parece muito exato. Ao que tudo indica, ela já passou deste ponto e está no bom caminho. Certamente não na velocidade desejada. Mas nesse caso o desafio não é tanto aprumar o passo, e sim acelerá-lo.

Pulverização partidária não pode mais ter vez – Opinião | O Globo

Qualidade da política piorará se houver retrocesso na proibição de coligação em eleição proporcional

Na pauta do Congresso de 2021, é provável que surjam propostas para restaurar as coligações partidárias em pleitos proporcionais, extintas nas mudanças feitas em 2017 na legislação eleitoral. A medida foi adotada no último pleito municipal e contribuiu para reduzir a pulverização de legendas nas câmaras de vereadores.

Em 2016, apenas 4,7% das cidades tinham até três partidos representados na Câmara. Neste ano, 28,2% dos municípios passaram a contar com três partidos ou menos. Com até cinco legendas, eram 28,2% municípios em 2016. Agora, 68,7%.

Foi cumprido o objetivo da mudança: conferir maior representatividade aos partidos e maior transparência à relação entre Legislativo e Executivo. Um número excessivo de partidos dificulta a formação de maiorias para dar sustentação aos governos e tende a tornar obscuras as negociações. Tanto nos municípios quanto nas assembleias estaduais e na Câmara dos Deputados, a qualidade da política melhora com uma pulverização menor.

É falso o argumento, adotado pelos partidos menores, de que o fim das coligações necessariamente acabará com eles. Partidos sem representatividade no Legislativo podem continuar a operar, como garante a Constituição, mas sem bancadas nas Casas legislativas nem acesso aos fundos partidários e a tempo de propaganda em TV e rádio.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, um número menor de partidos implica representatividade maior. As coligações nas eleições proporcionais desfaziam o elo entre eleitor e candidato. Não era nada incomum, nas alianças amplas entre partidos, ocorrer de um voto dado para um candidato de esquerda ajudar a eleger um de direita, uma vez redistribuídos os votos entre todas as legendas que compunham uma coligação.

Outro dispositivo aprovado também em 2017 para tornar o Congresso mais representativo foi a cláusula de barreira ou desempenho. Ela se baseia num conceito indiscutivelmente democrático: quem tem mais voto tem mais representatividade. Estabelece, em escala crescente até 2031, que as legendas tenham uma votação mínima por pleito, para continuarem com bancadas.

Começou a ser aplicada nas eleições de 2018, quando passou-se a exigir de todos os partidos concorrendo à Câmara que obtivessem pelo menos 1,5% do total de votos válidos para deputado, distribuídos por pelo menos nove estados, com não menos que 1% em cada um deles. Cinco das 14 legendas que não cumpriram a cláusula de desempenho em 2018 decidiram se unir.

Ainda assim, há 24 legendas representadas no Congresso. É demais perto do que existe mesmo nas democracias com parlamentos mais fragmentados (o triplo da média, de acordo com medidas usadas pelos cientistas políticos). A pulverização é um incentivo ao troca-troca partidário, à inconsistência ideológica e ao fisiologismo. Numa democracia madura e realmente representativa, ela não pode mais ter vez.

Indulto de Bolsonaro a policiais traduz corporativismo e ideologia – Opinião | O Globo

Do ponto de vista lógico, faria mais sentido indultar condenados por infrações leves, como porte de drogas

Pelo segundo ano consecutivo, o presidente Jair Bolsonaro privilegiou, no tradicional indulto de Natal, a categoria que lhe é mais cara. Além do benefício concedido por razões humanitárias a presos deficientes ou acometidos por doença grave, também foram indultados “agentes públicos que compõem o sistema nacional de segurança pública”: militares e policiais de todas as corporações.

O indulto não deve ser confundido com a saída temporária, comum no período de festas. Para efeitos práticos, equivale a um perdão. Significa que o beneficiado está doravante quite com a sociedade e não precisa mais cumprir as penas a que foi condenado.

Como todo indulto, o deste ano exclui crimes hediondos ou graves, caso de tortura, participação em organizações criminosas, terrorismo, pedofilia ou tráfico de drogas. Mas inclui policiais condenados por atos cometidos mesmo no período de folga e os que cometeram “crimes culposos ou por excesso culposo”.

Não é preciso ser especialista em exegese jurídica para entender tais palavras. Bolsonaro usou o indulto presidencial para atropelar decisões da Justiça relativas a policiais. Na prática, da caneta presidencial, saiu um “excludente de ilicitude” para a polícia.

Por uma decisão do Supremo sobre o indulto natalino concedido pelo então presidente Michel Temer em 2017, nada há de errado no ato de Bolsonaro. Temer extinguira o limite de condenação necessário para um condenado ter direito ao benefício (ampliado para 12 anos nos governos Lula e Dilma) e estabelecera como exigência apenas o cumprimento de um quinto da pena. Pela decisão do Supremo, o presidente tem poderes praticamente ilimitados para decidir quem indultar.

Mesmo que os indultos de Temer e Bolsonaro tenham respeitado a Constituição, isso não quer dizer que tenham sido corretos. O primeiro pecou pela permissividade, ao libertar corruptos e criminosos de colarinho branco. O segundo agiu movido pelo corporativismo e pela ideologia que acredita, contra todas as evidências, que policiais e militares devem ser tratados com mais leniência que o cidadão comum.

Nada disso deveria ser o objetivo original do indulto. Ele é necessário, primeiro, por razões humanitárias, para retirar da prisão quem não oferece mais risco à sociedade. Segundo, para aliviar um sistema carcerário que hoje abriga mais de 800 mil presos, dois quintos sem condenação. Do ponto de vista lógico, faria muito mais sentido indultar os milhares de condenados por infrações leves, como porte de pequenas quantidades de maconha ou de outras drogas, do que corruptos ou policiais criminosos. Mas a motivação de Bolsonaro obviamente não segue a lógica.

A anomalia – Opinião | Folha de S. Paulo

Bolsonaro subverte expectativa de busca de consensos inerente ao regime de 1988

O regime constitucional de 1988 procurou corrigir o desequilíbrio que levou os sistemas que o precederam a oscilarem entre o impasse e o autoritarismo. O presidente da República não poderia ser fraco a ponto de tornar-se refém do humor circunstancial do Congresso. O chefe do governo tampouco deveria flanar acima das instituições.

A solução, engenhosa, foi dotar a Presidência de prerrogativas mais que suficientes para o seu incumbente liderar a agenda pública nacional, mas de empoderar em paralelo os organismos de Estado dedicados a controlar o Poder Executivo. Vem daí a saliência acumulada nas últimas décadas de órgãos como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal.

O pressuposto do sistema era que a sua mecânica estimularia o presidente a atuar em nome de consensos, com responsabilidade e moderação. Se no Legislativo poderia vigorar a lógica fragmentária, no Executivo os vetores tenderiam a privilegiar a visão do conjunto.

Em relação a esse enquadramento, a eleição e a primeira metade do mandato de Jair Bolsonaro são uma anomalia. O chefe de Estado agiu como líder sectário, investiu contra a aspiração majoritária de minimizar e abreviar o sofrimento com a pandemia, atacou Legislativo e Judiciário com mensagens e atitudes golpistas e atirou à lama o decoro exigido no cargo.

A atuação diante da crise sanitária talvez seja o maior fracasso do espírito constitucional de 1988 no caso do atual mandatário. Enquanto praticamente todos os homólogos de Bolsonaro pelo mundo entenderam a dimensão do desafio e agiram para aumentar a proteção dos seus cidadãos, o governante brasileiro tornou-se um patrocinador de atitudes de risco.

Também na contramão do que se faz no planeta, Bolsonaro saiu a alardear tratamentos sem eficácia comprovada e empregou recursos públicos em sua ideia fixa. Perseverou na demissão de ministros da Saúde até achar alguém lisonjeado com genuflexões diante do chefe.

Sabotou o governador de São Paulo —chegou a comemorar a morte de um voluntário nos testes da vacina paulista—, enquanto o Executivo federal oferecia nada a 212 milhões de pessoas. O Brasil não tem data para começar a campanha de vacinação, não tem imunizantes nem seringas e assiste a outras nações latino-americanas vacinarem os seus cidadãos.

Para Jair Bolsonaro, no entanto, a irresponsabilidade não se limita à incompetência que compromete a saúde —e por essa via a renda— dos brasileiros. O exemplo que vem do presidente também desestimula a vacinação, seja ao difundir idiotices biológicas análogas ao terraplanismo geográfico, seja ao declarar que não pretende se vacinar.

Na frente institucional, o balanço não foi melhor. O mandatário tornou-se agitador de motins contra o Supremo e o Congresso. Quis trazer as Forças Armadas para o seu balé subversivo ao participar de protestos de lunáticos diante da caserna e ao ameaçar descumprir ordens judiciais. A percepção de que insistir no delírio conduziria ao impeachment o fez recuar.

Numa inversão de papéis em relação ao esperado pelo traçado constitucional, o presidente da Câmara dos Deputados acabou assumindo o papel de zelador da moderação e da racionalidade, barrando sandices que vinham do Planalto e propiciando legislações importantes para o futuro, como o Fundeb e a reforma previdenciária.

A desídia pela costura parlamentar do chefe do Executivo —aliada a seu instinto corporativista a favor da gastança e dos privilégios estamentais— impede hoje uma alternativa fiscalmente viável para o fim do auxílio emergencial.

A ideia de remanejar políticas públicas para custear a expansão do socorro aos mais pobres necessita de um presidente responsável, além de politicamente hábil, para ser executada. Não é Bolsonaro.

Este nem mesmo entendeu que inexiste solução para a economia que não passe, necessariamente, pela vacinação em massa. Não percebe que ao trabalhar contra a imunização trai seus próprios interesses, que dirá os da sociedade.

O 2020 de Bolsonaro

18.fev - Faz ofensa de cunho sexual a Patrícia Campos Mello, da Folha

4.mar - Ironiza mau desempenho da economia: "O que é PIB?"

20. mar - Chama a Covid-19 de "gripezinha"

24. mar - Critica fechamento de escolas e comércio, ataca governadores e culpa imprensa

31. mar - No aniversário do golpe militar, diz que "hoje é o dia da liberdade"

16.abr – Troca Luiz enrique Mandetta por por Nelson Teich na Saúde

19.abr - Em frente ao QG do Exército, discursa em manifestação onde se defendia golpe militar

24.abr – É acusado de tentar interferir na PF por Sergio Moro, que deixa o governo

15.mai – Leva Teich a deixar a Saúde

7.jul - Anuncia ter contraído a Covid-19

23.ago - "A vontade é encher tua boca de porrada", diz a um jornalista que o questionou sobre depósitos para a primeira-dama

22.set - Faz discurso negacionista na ONU

21.out - Desautoriza ministro Eduardo Pazuello e suspende compra da Coronavac

10.nov - Celebra suspensão dos estudos da Coronavac motivada pela morte de um voluntário

O ano em que tudo mudou – Opinião | The Economist

Por que a pandemia de 2020 será lembrada como ponto de inflexão da história, assim como o foram os anos 1920

Warren Harding construiu sua campanha para as eleições presidenciais de 1920 em torno de uma nova palavra: “normalidade”. Era um apelo ao suposto desejo dos americanos de esquecer os horrores da 1.ª Guerra e da gripe espanhola e voltar às certezas da Era Dourada. No entanto, em vez de abraçar a normalidade de Harding, os loucos Anos Vinte se tornaram um fermento para arriscadas novidades sociais, industriais e artísticas de olho no futuro.

A desinibição da Era do Jazz teve algo a ver com a guerra e também com a pandemia de gripe, que matou seis vezes mais americanos que os combates e deixou os sobreviventes com apetite para viver os anos 1920 a toda velocidade. Esse espírito também animará a década de 2020. A própria escala do sofrimento da covid-19, as injustiças e perigos que a pandemia revelou e a promessa de inovação indicam que 2020 será lembrado como o ano em que tudo mudou.

A pandemia é um acontecimento que ocorre uma vez a cada século. O Sars-Cov-2 já foi encontrado em mais de 70 milhões de pessoas e possivelmente infectou outras 500 milhões que nunca foram diagnosticadas. O vírus causou 1,6 milhão de mortes registradas; muitas centenas de milhares não chegaram aos registros. Milhões de sobreviventes estão convivendo com a exaustão e as enfermidades das “sequelas da covid”.

A produção econômica mundial está pelo menos 7% abaixo do que se previa, a maior queda desde a 2.ª Guerra. Das cinzas de todo esse sofrimento surgirá a sensação de que a vida não deve ser poupada, mas, sim, vivida.

Outro motivo para esperarmos mudança – ou, pelo menos, desejá-la – é que a covid-19 serviu de alerta. Os 80 bilhões de animais abatidos para alimentação e vestimenta todos os anos são placas de Petri para os vírus e bactérias que a cada década evoluem para se tornarem patógenos letais aos humanos. Agora a conta chegou – e foi astronômica. O céu claro que surgiu quando a economia entrou em lockdown foi um símbolo poderoso de como a covid-19 é uma crise veloz se movendo dentro de uma crise lenta, à qual se assemelha em alguns aspectos. Assim como a pandemia, a mudança climática é impermeável a negações populistas, é global na disrupção que causa e, se for negligenciada agora, sairá muito mais cara no futuro.

Um terceiro motivo para esperarmos mudanças é que a pandemia destacou a injustiça. Algumas crianças ficaram para trás nas aulas – e muitas vezes passaram fome. Os jovens que tiveram de abandonar a escola e os recém-formados viram suas perspectivas se estreitarem, mais uma vez.

Pessoas de todas as idades sofreram com a solidão ou a violência doméstica. Trabalhadores migrantes ficaram à deriva ou foram mandados de volta para suas aldeias, levando a doença consigo. O sofrimento variou muito conforme a cor da pele. Um hispano-americano de 40 anos tem 12 vezes mais probabilidade de morrer de covid-19 do que um americano branco da mesma idade. Em São Paulo, os brasileiros negros com menos de 20 anos têm duas vezes mais chances de morrer do que os brancos.

Enquanto o mundo se adaptava, algumas dessas iniquidades pioraram. Estudos sugerem que, nos Estados Unidos, cerca de 60% dos empregos que pagam mais de US$ 100 mil anuais podem ser exercidos de casa, em comparação com 10% dos empregos que pagam menos de US$ 40 mil.

E, se o desemprego disparou este ano, o índice MSCI dos mercados de ações mundiais aumentou 11%. No pior cenário, calcula a ONU, a pandemia pode levar mais de 200 milhões de pessoas à pobreza extrema. Sua situação será exacerbada por governantes autoritários e candidatos a tiranos que exploraram o vírus para reforçar seu controle sobre o poder.

Talvez seja por isso que, no passado, as pandemias provocaram revoluções. O FMI analisou 133 países no período 2001-18 e descobriu que a inquietação social aumentou cerca de 14 meses após o início das doenças, com pico após 24 meses. Quanto mais desigual é a sociedade, maior a convulsão. Na verdade, o fundo alerta para um círculo vicioso, pelo qual os protestos intensificam ainda mais as dificuldades, o que, por sua vez, alimenta os protestos.

Felizmente, a covid-19 não apenas trouxe a necessidade de mudança como também apontou um caminho a seguir. Isto se deve, pelo menos em parte, ao fato de ter servido como motor para inovação. Sob regime de lockdown, a parcela do comércio eletrônico nas vendas do varejo americano cresceu tanto em oito semanas quanto nos cinco anos anteriores. Com as pessoas trabalhando em casa, as viagens no metrô de Nova York caíram mais de 90%. Quase da noite para o dia, negócios começaram a ser administrados a partir de quartos vazios e mesas de cozinha – um experimento que, de outra forma, levaria anos para se desenvolver, se é que chegaria a ser cogitado.

Essa disrupção está só começando. A pandemia é a prova de que a mudança é possível até mesmo em setores conservadores, como o de saúde. Alimentada por dinheiro barato e novas tecnologias – entre elas inteligência artificial e, possivelmente, computação quântica – a inovação vai derrubar uma indústria depois da outra. Por exemplo, nos últimos 40 anos, os custos nas faculdades e universidades americanas aumentaram quase cinco vezes mais rápido do que os preços ao consumidor, mesmo que o ensino quase não tenha mudado, abrindo espaço para disrupções.

Outros avanços tecnológicos em fontes renováveis de energia, redes inteligentes e baterias de armazenamento são etapas vitais no caminho para a substituição dos combustíveis fósseis.

O coronavírus também revelou algo profundo sobre a maneira como as sociedades precisam tratar o conhecimento. Os cientistas chineses sequenciaram o genoma do sars-cov-2 em semanas e o compartilharam com o mundo. As novas vacinas resultantes são apenas uma das paradas do progresso supersônico que esclareceu de onde o vírus veio, quem ele afeta, como ele mata e como se pode tratá-lo.

É uma demonstração notável do que a ciência pode realizar. Em um momento em que as conspirações correm soltas, esta pesquisa se ergue como uma repreensão aos ignorantes e fanáticos – em ditaduras e também democracias – que se comportam como se a evidência para uma afirmação não fosse nada perto da identidade de quem afirma.

pandemia também gerou um salto de inovação nos governos. Os países que podem bancar – e alguns que não podem, como o Brasil – suprimiram a desigualdade gastando mais de US$ 10 trilhões na covid-19, três vezes mais em termos reais do que na crise financeira. Isso redefinirá dramaticamente as expectativas dos cidadãos sobre o que os governos podem fazer por eles.

Muitas pessoas sob lockdown estão se perguntando o que é mais importante na vida. Os governos devem se inspirar nesse momento de reflexão, concentrando-se em políticas que promovam a dignidade individual, a autossuficiência e o orgulho cívico. Devem reformular o bem-estar e a educação e enfrentar concentrações de poder entrincheiradas, de modo a abrir novos horizontes para seus cidadãos. Toda a miséria deste ano da peste pode trazer algo de bom. E esse algo de bom precisa incluir um novo contrato social mais adequado ao século 21. / Tradução de Renato Prelorentzou 

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