A
postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser
vista como uma traição ao juramento por ele prestado ao tomar posse como
presidente
Nesta
hora grave, a postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos
brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado sobre
a Constituição ao tomar posse como presidente da República. Aquele que deveria
ser o líder de todos os esforços nacionais para acabar com um flagelo que há
dez longos meses exaure o espírito de milhões de seus compatriotas, ao
contrário, é o primeiro de uma penca de sabotadores desses esforços. E com
indisfarçável satisfação.
O
País chega a 2021 perto da marca de 195 mil mortos pela covid-19. Jamais tantos
brasileiros morreram em tão pouco tempo devido a uma só causa. Angustiada, a
Nação assiste ao início da campanha de vacinação contra o novo coronavírus em
cerca de 50 países, alguns dos quais em condições econômicas mais adversas que
as do Brasil, sem saber quando e como será vacinada. É como se aos que aqui
vivem não bastassem as provações já impostas pela pandemia, agregando-se um
presidente mequetrefe ao longo rol de infortúnios.
No sábado passado, ao ser questionado por um jornalista se sentia a pressão de ver outros países iniciarem a vacinação de seus nacionais, Bolsonaro reagiu dizendo “não dar bola para isso”, pois “ninguém o pressiona para nada”. É este presidente à prova de “pressões” – até mesmo a pressão para salvar vidas – que, como se não tivesse múltiplas crises para debelar, encontrou tempo para jogar futebol, debochar de adversários políticos, criticar os laboratórios que fabricam as vacinas e ofender a ex-presidente Dilma Rousseff, entre outros absurdos. Parece claro que Jair Bolsonaro está mais preocupado em desviar as atenções do País de sua irremediável incompetência do que em viabilizar o início de uma campanha de vacinação sem a qual mais brasileiros vão morrer e mais preso a este pesadelo estará o País.
Bolsonaro
é um presidente sui generis. Em sua cruzada antivacina, destoa até mesmo de
líderes aos quais sempre demonstrou ter profunda admiração, como o presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin
Netanyahu. Ambos não foram tão longe a ponto de questionar a segurança das
vacinas e mobilizaram seus governos para conseguir o maior número de doses para
seus nacionais no menor tempo possível. Líderes de direita e de extrema direita
com os quais o presidente brasileiro mantém afinidades ideológicas – como os
primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Hungria, Viktor Orbán,
também fizeram planos para adquirir vacinas.
No
início da segunda metade de seu mandato, Jair Bolsonaro ainda não tem um plano
para amparar os desvalidos que deixarão de receber o auxílio emergencial, não
tem um plano para destravar a economia e gerar empregos e, não menos
importante, não tem um plano para vacinar toda a população. Não há saída
possível para a crise que paralisa o Brasil que não passe por uma rápida e
eficaz imunização contra a covid-19.
A
Nação vê-se perdida em meio à falta de informações ou à comunicação vacilante
das ditas autoridades. As duas vacinas mais próximas dos brasileiros, a
Coronavac, fruto da parceria entre o Instituto Butantan e a chinesa Sinovac
Life Science, e o imunizante da AstraZeneca e da Universidade de Oxford, que
será produzido no Brasil pela Fiocruz, ainda são meras promessas. Até o
momento, não se sabe exatamente qual a eficácia da primeira. E erros
metodológicos atrasaram a conclusão dos testes de fase 3 da segunda.
Não
se esperava que o Brasil fosse um dos primeiros países a vacinar seus cidadãos.
Afinal, havia países mais desenvolvidos com condições de sair na frente em suas
campanhas de vacinação. Tampouco condiz com a grandeza do País não haver sequer
previsão segura do início da imunização por aqui. E não há porque Bolsonaro
nunca quis que houvesse.
A inépcia documentada – Opinião | O Estado de S. Paulo
Relatórios
do TCU são o registro histórico da inépcia de Bolsonaro para lidar com pandemia
Desde o início da pandemia de covid-19, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem produzido uma série de relatórios de acompanhamento das ações do governo federal para enfrentar a emergência sanitária e seus desdobramentos sociais e econômicos. Ao lado dos registros da imprensa, dos anais do Congresso, dos livros já publicados e dos que ainda serão escritos, esses documentos do TCU constituem o registro histórico da mais absoluta inépcia do presidente Jair Bolsonaro para lidar com uma tragédia que já matou quase 190 mil de seus compatriotas.
A
leitura atenta desses relatórios elaborados pela Corte de Contas não deixa
dúvida de que, além da mais severa crise sanitária desde 1918, a Nação se vê às
voltas com o mais despreparado presidente da República na história recente do
País. Bolsonaro, logo de saída, desdenhou da gravidade da covid-19 – nada mais
do que uma “gripezinha”. O que se viu a partir de então foi um funesto
desdobramento do misto de negação, arrogância e incompetência do presidente nas
ações de seu governo para combater a pandemia.
No
mais recente relatório de acompanhamento do TCU, divulgado há dias, o ministro
Benjamin Zymler diz claramente que, ao analisar documentos e ações do governo
federal, é incapaz de enxergar “um planejamento do Ministério da Saúde
minimamente detalhado para o combate à pandemia”. Trata-se do quarto relatório
elaborado pela Corte de Contas. O quarto. O mundo se aproxima do décimo mês de
pandemia, com evidentes sinais de crescimento descontrolado do número de casos
e mortes. E o Ministério da Saúde, no entendimento do ministro e de qualquer
pessoa razoavelmente informada, ainda não foi capaz de elaborar um plano de
combate à pandemia “minimamente detalhado”.
Em
julho, convém lembrar, o TCU já havia “sugerido” ao Ministério da Saúde algumas
ações para “correção de rumos” no enfrentamento da pandemia (ver
editorial A tragédia dentro da tragédia, publicado em 24/7/2020). Ao que
tudo indica, no geral, foi ignorado.
Diante
do absurdo que é a falta de um plano estruturado para lidar com a crise do novo
coronavírus a esta altura dos acontecimentos, o ministro Zymler registrou o
óbvio por escrito, asseverando que “o planejamento governamental é importante
para a execução de qualquer política pública, mesmo aquelas relacionadas ao
enfrentamento de uma situação de emergência”. Seria de constranger qualquer
governante minimamente cioso de suas responsabilidades, mas é de Bolsonaro que
se trata.
O
apequenamento do Ministério da Saúde e a gestão errática da crise sanitária
após a demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta resultam da abordagem
mesquinha da pandemia por Bolsonaro, que a vê mais como uma oportunidade de
fazer campanha política e inflamar seus apoiadores radicais do que como um
gravíssimo problema de saúde pública a merecer a ação firme do presidente da
República. Isto não está dito nos relatórios do TCU, mas é o que deles se
depreende.
Caso
Bolsonaro estivesse determinado no propósito de resguardar a saúde dos
brasileiros, não haveria, por exemplo, milhões de kits de testes para covid-19
apodrecendo nos galpões do governo federal em Guarulhos. Cerca de 17 milhões
dos 20 milhões de máscaras adquiridas pelo governo em março já teriam sido
enviadas para hospitais e postos de saúde País afora. Tampouco faltariam
sedativos fundamentais para a intubação dos pacientes mais graves. Por fim, não
haveria descompasso entre a compra de milhões de seringas e agulhas e as
tratativas para aquisição de vacinas para a população, como apontado pelo TCU
no relatório mais recente.
Os
relatórios do TCU deixam claro que os efeitos da pandemia poderiam ter sido bem
menos graves caso o governo federal – em particular o Ministério da Saúde –
exercesse o papel de coordenação dos esforços nacionais para enfrentamento da
crise. Ao ignorar essa responsabilidade, deixa o País à própria sorte.
Ao
menos o descaso está documentado.
Desafios para a biodiversidade – Opinião | O Estado de S. Paulo
Se
perder a janela de oportunidades, Brasil atrairá o opróbrio internacional
A pandemia de covid-19 expôs agudamente os riscos do desequilíbrio crônico na relação entre os seres humanos e a natureza. É um lembrete mortífero das possíveis consequências da contínua degradação dos ecossistemas globais.
A
fim de frear a perda de biodiversidade, a comunidade internacional adotou em
2010 o Plano Estratégico de Biodiversidade 2011-2020 de Aichi. Segundo a
avaliação da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, detalhada no
seu Panorama da Biodiversidade Global,
de lá para cá houve um progresso sensível, mas insuficiente.
Entre
os avanços que merecem destaque está a redução significativa da taxa de
desmatamento: cerca de um terço em comparação com a década anterior. Também
houve uma expressiva expansão de áreas protegidas: entre 10% e 15% na terra e
3% e 7% no mar entre 2000 e 2020. Em relação às “áreas-chave” para a
biodiversidade o crescimento foi ainda maior: de 29% a 44%.
Além
das áreas protegidas, o número de extinções foi reduzido por uma série de
medidas, como restrições à caça e a regeneração da biodiversidade por meio da
reintrodução de espécies perdidas e o controle da invasão de espécies
alienígenas aos biomas. Sem essas medidas, estima-se que a extinção de pássaros
e mamíferos na década passada teria sido duas a quatro vezes maior.
O Panorama aponta
oito áreas de transição interdependentes para um futuro sustentável:
conservação de florestas e o bom uso das terras; a garantia dos fluxos de água
fresca para a natureza e para os humanos; proteção dos ecossistemas marinhos e
a pesca sustentável; agricultura sustentável; diversidade e segurança
alimentar; infraestrutura verde para as cidades; processamentos industriais
baseados em soluções naturais e transição dos combustíveis fósseis para os
verdes; e uma abordagem sanitária integrada para promover ambientes naturais e
humanos saudáveis.
O
Brasil, guardião de uma das maiores biodiversidades do mundo e uma potência
agropecuária, pode exercer um protagonismo decisivo. Dada a importância que a
questão ambiental assumiu aos olhos do mundo, perder essa janela de oportunidades
não o deixará só numa posição de neutralidade, mas atrairá o opróbrio
internacional. Sua responsabilidade é grande e a missão é nobre. Cumpri-la
exigirá grandes investimentos na técnica (pesquisa e desenvolvimento), mas,
sobretudo, um debate público bem informado e equilibrado.
Após
200 anos de revolução industrial, a última geração abriu os olhos e o coração
para a ameaça ao meio ambiente. Algum grau de hipersensibilidade ao problema,
ainda que não inevitável, é natural. Aqui e ali se nota certo desequilíbrio
entre as ideias e os fatos; as intenções e as práticas; as ameaças e os
temores.
O
próprio Panorama da ONU é um exemplo. Seus autores o abrem com
palavras de ordem ameaçadoras e alarmantes: “A humanidade está parada numa
encruzilhada em relação ao legado para as futuras gerações. A biodiversidade
está declinando a uma taxa sem precedentes, e as pressões que orientam esse
declínio estão se intensificando”. Mas, apenas alguns parágrafos adiante, o
próprio Panorama cataloga evidências que temperam – quando não
contradizem – essas advertências tão aterradoras.
O
declínio, é verdade, continua, e, a rigor, nenhuma das 20 Metas de
Biodiversidade de Aichi foi plenamente atingida. Seis, contudo, foram
parcialmente atingidas. O detalhe é mais animador: dos 60 elementos específicos
que compõem as Metas, 7 foram totalmente cumpridos e em 38 houve progresso.
Apenas em 13 elementos não houve qualquer progresso – em um ou outro houve um
efetivo afastamento da meta –, e dois não puderam ser mensurados. Assim, se o progresso
foi insuficiente, ao menos não houve retrocessos expressivos. Dizer, portanto,
que a humanidade está “parada numa encruzilhada” pode ter um valor
motivacional, mas não parece muito exato. Ao que tudo indica, ela já passou
deste ponto e está no bom caminho. Certamente não na velocidade desejada. Mas
nesse caso o desafio não é tanto aprumar o passo, e sim acelerá-lo.
Pulverização partidária não pode mais ter vez – Opinião | O Globo
Qualidade
da política piorará se houver retrocesso na proibição de coligação em eleição
proporcional
Na
pauta do Congresso de 2021, é provável que surjam propostas para restaurar as
coligações partidárias em pleitos proporcionais, extintas nas mudanças feitas
em 2017 na legislação eleitoral. A medida foi adotada no último pleito
municipal e contribuiu para reduzir a pulverização de legendas nas câmaras de
vereadores.
Em
2016, apenas 4,7% das cidades tinham até três partidos representados na Câmara.
Neste ano, 28,2% dos municípios passaram a contar com três partidos ou menos.
Com até cinco legendas, eram 28,2% municípios em 2016. Agora, 68,7%.
Foi
cumprido o objetivo da mudança: conferir maior representatividade aos partidos
e maior transparência à relação entre Legislativo e Executivo. Um número
excessivo de partidos dificulta a formação de maiorias para dar sustentação aos
governos e tende a tornar obscuras as negociações. Tanto nos municípios quanto
nas assembleias estaduais e na Câmara dos Deputados, a qualidade da política
melhora com uma pulverização menor.
É
falso o argumento, adotado pelos partidos menores, de que o fim das coligações
necessariamente acabará com eles. Partidos sem representatividade no
Legislativo podem continuar a operar, como garante a Constituição, mas sem
bancadas nas Casas legislativas nem acesso aos fundos partidários e a tempo de
propaganda em TV e rádio.
Ao
contrário do que pode parecer à primeira vista, um número menor de partidos
implica representatividade maior. As coligações nas eleições proporcionais
desfaziam o elo entre eleitor e candidato. Não era nada incomum, nas alianças
amplas entre partidos, ocorrer de um voto dado para um candidato de esquerda
ajudar a eleger um de direita, uma vez redistribuídos os votos entre todas as
legendas que compunham uma coligação.
Outro
dispositivo aprovado também em 2017 para tornar o Congresso mais representativo
foi a cláusula de barreira ou desempenho. Ela se baseia num conceito
indiscutivelmente democrático: quem tem mais voto tem mais representatividade.
Estabelece, em escala crescente até 2031, que as legendas tenham uma votação
mínima por pleito, para continuarem com bancadas.
Começou
a ser aplicada nas eleições de 2018, quando passou-se a exigir de todos os
partidos concorrendo à Câmara que obtivessem pelo menos 1,5% do total de votos
válidos para deputado, distribuídos por pelo menos nove estados, com não menos
que 1% em cada um deles. Cinco das 14 legendas que não cumpriram a cláusula de
desempenho em 2018 decidiram se unir.
Ainda
assim, há 24 legendas representadas no Congresso. É demais perto do que existe
mesmo nas democracias com parlamentos mais fragmentados (o triplo da média, de
acordo com medidas usadas pelos cientistas políticos). A pulverização é um
incentivo ao troca-troca partidário, à inconsistência ideológica e ao
fisiologismo. Numa democracia madura e realmente representativa, ela não pode
mais ter vez.
Indulto
de Bolsonaro a policiais traduz corporativismo e ideologia – Opinião | O Globo
Do
ponto de vista lógico, faria mais sentido indultar condenados por infrações
leves, como porte de drogas
Pelo
segundo ano consecutivo, o presidente Jair Bolsonaro privilegiou, no
tradicional indulto de Natal, a categoria que lhe é mais cara. Além do
benefício concedido por razões humanitárias a presos deficientes ou acometidos
por doença grave, também foram indultados “agentes públicos que compõem o
sistema nacional de segurança pública”: militares e policiais de todas as
corporações.
O
indulto não deve ser confundido com a saída temporária, comum no período de
festas. Para efeitos práticos, equivale a um perdão. Significa que o
beneficiado está doravante quite com a sociedade e não precisa mais cumprir as
penas a que foi condenado.
Como
todo indulto, o deste ano exclui crimes hediondos ou graves, caso de tortura,
participação em organizações criminosas, terrorismo, pedofilia ou tráfico de
drogas. Mas inclui policiais condenados por atos cometidos mesmo no período de
folga e os que cometeram “crimes culposos ou por excesso culposo”.
Não
é preciso ser especialista em exegese jurídica para entender tais palavras.
Bolsonaro usou o indulto presidencial para atropelar decisões da Justiça
relativas a policiais. Na prática, da caneta presidencial, saiu um “excludente
de ilicitude” para a polícia.
Por
uma decisão do Supremo sobre o indulto natalino concedido pelo então presidente
Michel Temer em 2017, nada há de errado no ato de Bolsonaro. Temer extinguira o
limite de condenação necessário para um condenado ter direito ao benefício
(ampliado para 12 anos nos governos Lula e Dilma) e estabelecera como exigência
apenas o cumprimento de um quinto da pena. Pela decisão do Supremo, o
presidente tem poderes praticamente ilimitados para decidir quem indultar.
Mesmo
que os indultos de Temer e Bolsonaro tenham respeitado a Constituição, isso não
quer dizer que tenham sido corretos. O primeiro pecou pela permissividade, ao
libertar corruptos e criminosos de colarinho branco. O segundo agiu movido pelo
corporativismo e pela ideologia que acredita, contra todas as evidências, que
policiais e militares devem ser tratados com mais leniência que o cidadão
comum.
Nada
disso deveria ser o objetivo original do indulto. Ele é necessário, primeiro,
por razões humanitárias, para retirar da prisão quem não oferece mais risco à
sociedade. Segundo, para aliviar um sistema carcerário que hoje abriga mais de
800 mil presos, dois quintos sem condenação. Do ponto de vista lógico, faria
muito mais sentido indultar os milhares de condenados por infrações leves, como
porte de pequenas quantidades de maconha ou de outras drogas, do que corruptos
ou policiais criminosos. Mas a motivação de Bolsonaro obviamente não segue a
lógica.
A anomalia – Opinião | Folha de S. Paulo
Bolsonaro
subverte expectativa de busca de consensos inerente ao regime de 1988
O
regime constitucional de 1988 procurou corrigir o desequilíbrio que levou os
sistemas que o precederam a oscilarem entre o impasse e o autoritarismo. O
presidente da República não poderia ser fraco a ponto de tornar-se refém do
humor circunstancial do Congresso. O chefe do governo tampouco deveria flanar
acima das instituições.
A
solução, engenhosa, foi dotar a Presidência de prerrogativas mais que
suficientes para o seu incumbente liderar a agenda pública nacional, mas de
empoderar em paralelo os organismos de Estado dedicados a controlar o Poder
Executivo. Vem daí a saliência acumulada nas últimas décadas de órgãos como o
Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal.
O
pressuposto do sistema era que a sua mecânica estimularia o presidente a atuar
em nome de consensos, com responsabilidade e moderação. Se no Legislativo
poderia vigorar a lógica fragmentária, no Executivo os vetores tenderiam a
privilegiar a visão do conjunto.
Em
relação a esse enquadramento, a eleição e a primeira metade do mandato de Jair
Bolsonaro são uma anomalia. O chefe de Estado agiu como líder sectário,
investiu contra a aspiração majoritária de minimizar e abreviar o sofrimento
com a pandemia, atacou Legislativo e Judiciário com mensagens e atitudes
golpistas e atirou à lama o decoro exigido no cargo.
A
atuação diante da crise sanitária talvez seja o maior fracasso do espírito
constitucional de 1988 no caso do atual mandatário. Enquanto praticamente todos
os homólogos de Bolsonaro pelo mundo entenderam a dimensão do desafio e agiram
para aumentar a proteção dos seus cidadãos, o governante brasileiro tornou-se
um patrocinador de atitudes de risco.
Também
na contramão do que se faz no planeta, Bolsonaro saiu a alardear tratamentos
sem eficácia comprovada e empregou recursos públicos em sua ideia fixa.
Perseverou na demissão de ministros da Saúde até achar alguém lisonjeado com
genuflexões diante do chefe.
Sabotou
o governador de São Paulo —chegou a comemorar a morte de um voluntário nos
testes da vacina paulista—, enquanto o Executivo federal oferecia nada a 212
milhões de pessoas. O Brasil não tem data para começar a campanha de vacinação,
não tem imunizantes nem seringas e assiste a outras nações latino-americanas
vacinarem os seus cidadãos.
Para
Jair Bolsonaro, no entanto, a irresponsabilidade não se limita à incompetência
que compromete a saúde —e por essa via a renda— dos brasileiros. O exemplo que
vem do presidente também desestimula a vacinação, seja ao difundir idiotices
biológicas análogas ao terraplanismo geográfico, seja ao declarar que não
pretende se vacinar.
Na
frente institucional, o balanço não foi melhor. O mandatário tornou-se agitador
de motins contra o Supremo e o Congresso. Quis trazer as Forças Armadas para o
seu balé subversivo ao participar de protestos de lunáticos diante da caserna e
ao ameaçar descumprir ordens judiciais. A percepção de que insistir no delírio
conduziria ao impeachment o fez recuar.
Numa
inversão de papéis em relação ao esperado pelo traçado constitucional, o
presidente da Câmara dos Deputados acabou assumindo o papel de zelador da
moderação e da racionalidade, barrando sandices que vinham do Planalto e
propiciando legislações importantes para o futuro, como o Fundeb e a reforma
previdenciária.
A
desídia pela costura parlamentar do chefe do Executivo —aliada a seu instinto
corporativista a favor da gastança e dos privilégios estamentais— impede hoje
uma alternativa fiscalmente viável para o fim do auxílio emergencial.
A
ideia de remanejar políticas públicas para custear a expansão do socorro aos
mais pobres necessita de um presidente responsável, além de politicamente
hábil, para ser executada. Não é Bolsonaro.
Este
nem mesmo entendeu que inexiste solução para a economia que não passe,
necessariamente, pela vacinação em massa. Não percebe que ao trabalhar contra a
imunização trai seus próprios interesses, que dirá os da sociedade.
O
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O ano em que tudo mudou – Opinião | The Economist
Por que a pandemia de 2020 será lembrada como ponto de inflexão da história, assim como o foram os anos 1920
Warren
Harding construiu sua campanha para as eleições presidenciais de 1920 em torno
de uma nova palavra: “normalidade”. Era um apelo ao suposto desejo dos
americanos de esquecer os horrores da 1.ª Guerra e da gripe
espanhola e voltar às certezas da Era Dourada. No entanto, em
vez de abraçar a normalidade de Harding, os loucos Anos Vinte se tornaram um
fermento para arriscadas novidades sociais, industriais e artísticas de olho no
futuro.
A
desinibição da Era do Jazz teve algo a ver com a guerra e também com a pandemia
de gripe, que matou seis vezes mais americanos que os combates e deixou os
sobreviventes com apetite para viver os anos 1920 a toda velocidade. Esse
espírito também animará a década de 2020. A própria escala do sofrimento
da covid-19,
as injustiças e perigos que a pandemia revelou e a promessa de inovação indicam
que 2020 será lembrado como o ano em que tudo mudou.
A
pandemia é um acontecimento que ocorre uma vez a cada século. O Sars-Cov-2 já
foi encontrado em mais de 70 milhões de pessoas e possivelmente infectou outras
500 milhões que nunca foram diagnosticadas. O vírus causou 1,6 milhão de mortes
registradas; muitas centenas de milhares não chegaram aos registros. Milhões de
sobreviventes estão convivendo com a exaustão e as enfermidades das “sequelas
da covid”.
A
produção econômica mundial está pelo menos 7% abaixo do que se previa, a maior
queda desde a 2.ª Guerra. Das
cinzas de todo esse sofrimento surgirá a sensação de que a vida não deve ser
poupada, mas, sim, vivida.
Outro
motivo para esperarmos mudança – ou, pelo menos, desejá-la – é que a covid-19
serviu de alerta. Os 80 bilhões de animais abatidos para alimentação e
vestimenta todos os anos são placas de Petri para os vírus e bactérias que a
cada década evoluem para se tornarem patógenos letais aos humanos. Agora a
conta chegou – e foi astronômica. O céu claro que surgiu quando a economia
entrou em lockdown foi um símbolo poderoso de como a covid-19 é uma crise veloz
se movendo dentro de uma crise lenta, à qual se assemelha em alguns aspectos.
Assim como a pandemia, a mudança climática é impermeável a negações populistas,
é global na disrupção que causa e, se for negligenciada agora, sairá muito mais
cara no futuro.
Um
terceiro motivo para esperarmos mudanças é que a pandemia destacou a injustiça.
Algumas crianças ficaram para trás nas aulas – e muitas vezes passaram fome. Os
jovens que tiveram de abandonar a escola e os recém-formados viram suas
perspectivas se estreitarem, mais uma vez.
Pessoas
de todas as idades sofreram com a solidão ou a violência doméstica.
Trabalhadores migrantes ficaram à deriva ou foram mandados de volta para suas
aldeias, levando a doença consigo. O sofrimento variou muito conforme a cor da
pele. Um hispano-americano de 40 anos tem 12 vezes mais probabilidade de morrer
de covid-19 do que um americano branco da mesma idade. Em São Paulo,
os brasileiros negros com menos de 20 anos têm duas vezes mais chances de
morrer do que os brancos.
Enquanto
o mundo se adaptava, algumas dessas iniquidades pioraram. Estudos sugerem que,
nos Estados Unidos, cerca de 60% dos empregos que pagam mais de US$ 100 mil
anuais podem ser exercidos de casa, em comparação com 10% dos empregos que
pagam menos de US$ 40 mil.
E,
se o desemprego disparou este ano, o índice MSCI dos mercados de ações mundiais
aumentou 11%. No pior cenário, calcula a ONU, a
pandemia pode levar mais de 200 milhões de pessoas à pobreza extrema. Sua
situação será exacerbada por governantes autoritários e candidatos a tiranos
que exploraram o vírus para reforçar seu controle sobre o poder.
Talvez
seja por isso que, no passado, as pandemias provocaram revoluções. O FMI analisou
133 países no período 2001-18 e descobriu que a inquietação social aumentou
cerca de 14 meses após o início das doenças, com pico após 24 meses. Quanto
mais desigual é a sociedade, maior a convulsão. Na verdade, o fundo alerta para
um círculo vicioso, pelo qual os protestos intensificam ainda mais as
dificuldades, o que, por sua vez, alimenta os protestos.
Felizmente,
a covid-19 não apenas trouxe a necessidade de mudança como também apontou um
caminho a seguir. Isto se deve, pelo menos em parte, ao fato de ter servido
como motor para inovação. Sob regime de lockdown, a parcela do comércio
eletrônico nas vendas do varejo americano cresceu tanto em oito semanas quanto
nos cinco anos anteriores. Com as pessoas trabalhando em casa, as viagens no
metrô de Nova York caíram
mais de 90%. Quase da noite para o dia, negócios começaram a ser administrados
a partir de quartos vazios e mesas de cozinha – um experimento que, de outra
forma, levaria anos para se desenvolver, se é que chegaria a ser cogitado.
Essa
disrupção está só começando. A pandemia é a prova de que a mudança é possível
até mesmo em setores conservadores, como o de saúde. Alimentada por dinheiro
barato e novas tecnologias – entre elas inteligência artificial e,
possivelmente, computação quântica – a inovação vai derrubar uma indústria
depois da outra. Por exemplo, nos últimos 40 anos, os custos nas faculdades e
universidades americanas aumentaram quase cinco vezes mais rápido do que os
preços ao consumidor, mesmo que o ensino quase não tenha mudado, abrindo espaço
para disrupções.
Outros
avanços tecnológicos em fontes renováveis de energia, redes inteligentes e
baterias de armazenamento são etapas vitais no caminho para a substituição dos
combustíveis fósseis.
O
coronavírus também revelou algo profundo sobre a maneira como as sociedades
precisam tratar o conhecimento. Os cientistas chineses sequenciaram o genoma do
sars-cov-2 em semanas e o compartilharam com o mundo. As novas vacinas
resultantes são apenas uma das paradas do progresso supersônico que esclareceu
de onde o vírus veio, quem ele afeta, como ele mata e como se pode tratá-lo.
É
uma demonstração notável do que a ciência pode realizar. Em um momento em que
as conspirações correm soltas, esta pesquisa se ergue como uma repreensão aos
ignorantes e fanáticos – em ditaduras e também democracias – que se comportam
como se a evidência para uma afirmação não fosse nada perto da identidade de
quem afirma.
A pandemia também gerou
um salto de inovação nos governos. Os países que podem bancar – e alguns que
não podem, como o Brasil – suprimiram a desigualdade gastando mais de US$ 10
trilhões na covid-19, três vezes mais em termos reais do que na crise
financeira. Isso redefinirá dramaticamente as expectativas dos cidadãos sobre o
que os governos podem fazer por eles.
Muitas pessoas sob lockdown estão se perguntando o que é mais importante na vida. Os governos devem se inspirar nesse momento de reflexão, concentrando-se em políticas que promovam a dignidade individual, a autossuficiência e o orgulho cívico. Devem reformular o bem-estar e a educação e enfrentar concentrações de poder entrincheiradas, de modo a abrir novos horizontes para seus cidadãos. Toda a miséria deste ano da peste pode trazer algo de bom. E esse algo de bom precisa incluir um novo contrato social mais adequado ao século 21. / Tradução de Renato Prelorentzou
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