Estranhos dias, estranho ano. 2020 não
começou em janeiro, como os que lhe antecederam, nem sabemos quando terminará.
Talvez nunca? Inesperado, de súbito, mudou nossas vidas. Não mais festas,
futebol, cinema, teatro. Encontros, trabalho (amor?), agora só à distância,
remotos.
Já a morte, que conosco nasce e a distância
buscamos mantê-la, tornou-se contigua, palpável e nos assedia com a frequência
das notícias da ida definitiva dos distantes e, mais e mais, dos próximos. Cada
vez mais próximos. Sem despedidas, último adeus, anônimos. Sentenciados,
passamos a viver em prisão domiciliar. Nunca dantes tão forçadamente próximos;
nunca dantes tão virtuais, remotas esperanças.
Nosso espaço se mede em parcos metros quadrados, quase redondos, de tão compartilhados. E há que redobrar o autocontrole, mas há, também, (re)descobertas, sob a fuligem da rotina. Recomeços. Ao sair, “use a máscara”; na chegada, “tire os sapatos e a roupa, tome banho”. Pedágios, obrigatórios, não esqueça. Das máscaras psíquicas, às virtuais. E também as de pano, papel, recicladas, sintéticas, de variadas cores, modelos – outdoors de times, mantras e mensagens.
Os olhos falam e brilham, indecifráveis. E as
bocas, ocultas, tropeçam em falas que chegam mixadas aos ouvidos. Proximidade
equivale a perigo: mantenha distância, a sociabilidade é um inimigo a evitar.
Cada apartamento, cada casa, uma ilha. Nos tornamos avatares de nós mesmos.
Habitantes compulsórios de telas, lives, calls, webinars intermináveis
e tão, mas tão cansativas.
Já não posso amar ao próximo como a mim mesmo.
Inexistem próximos ou rareiam. Examino meu corpo atentamente em busca dos
sinais Dele, o Mal que nos espreita, incansável, e que tememos nomear. De cor,
sabemos: tosse, febre, dor de cabeça, dores no corpo. Será? Em caso positivo,
Ele chegou, senhor do destino – do meu, do seu, de todos. Impiedoso, aleatório,
radical em sua colheita.
Reduzidos à esperança frágil que o nosso dia não
chegue, assistimos consternados a noite envolver os outros. Voltaremos ao que
éramos, perguntamos? Inútil saber, respondem as musas. Qual Severino, do poema
de João Cabral, hesitamos em saltar da ponte ou da vida e cair nos braços da
loucura. Esquecendo, talvez, que quanto mais escura é a noite, mais carrega em
si a madrugada.
E que se não renunciarmos à tarefa de dar sentido à
vida, dias melhores virão.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
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