Pareceu,
em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na
caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as
empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça
ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais
e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos
internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota
do capital.
A
sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros
foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu
a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa.
Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está
entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.
Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.
As
empresas iniciaram o combate à desigualdade racial em seus quadros de
funcionários, que ainda mantêm os negros nas funções com menor remuneração e
nenhum poder, e os brancos no comando. Essa paisagem corporativa começou a
mudar. O recrutamento ativo passou a ser levado a sério. Não por benemerência,
mas por necessidade algumas empresas corrigem sua forma de pensar e de recrutar
pessoas. Foi um avanço num ano distópico. Eu sei que muitos podem pensar: foi
um avanço mas pessoas morreram por isso. George Floyd e João Alberto Freitas. É
verdade. Mas no passado houve mortes que foram esquecidas sem mover a roda
emperrada da História.
Donald
Trump perdeu a eleição e isso foi muito bom. Sua escalada de desmonte da
democracia americana, sua negação da mudança climática, seu estímulo aos
supremacistas e governantes autoritários estão acabando. Joe Biden está
compondo um governo com diversidade. A vice Kamala Harris reforça essa
esperança. Na área ambiental e climática, Biden fez uma equipe que convenceu,
segundo editorial do New York Times. O veterano John Kerry vai organizar a
volta ao Acordo de Paris. A primeira indígena no governo, Deb Haaland, será a
secretária do Interior. Terá poder sobre parques e florestas nacionais que
antes estavam entregues a um lobista do petróleo. O setor de energia ficará com
Jennifer Granholm. Como governadora de Michigan ela liderou a implantação de
energia renovável. A lista dos acertos é longa.
Foi
o ano em que as famílias, as empresas, os eventos, o jornalismo testaram o fim
da distância. Não era mais preciso estar presente, para estar presente. Houve
um salto digital enorme. Era possível antes, mas não era tentado nessa escala.
Seminários, encontros, reuniões, entrevistas, festivais tudo feito pelas
plataformas que nos agregam em pontos diferentes do país, e do mundo. Esse
salto tecnológico deixará um legado. O mundo ficou mais estreito, entre quatro
paredes e, ao mesmo tempo, ampliou-se.
O
ano foi farto de eventos ruins, mas quero falar dos bons e me lembro dos
aniversariantes. Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto teriam feito 100
anos. O centenário do nascimento desses dois gênios nos ajudou em 2020. As
leituras ou releituras apontaram caminhos. Clarice ensinou em “Paixão segundo
G.H.” que “a atualidade não tem esperança, a atualidade não tem futuro”, e isso
nos dá esperança de que essa atualidade não se perpetue. E escreveu, como se
intuísse a grande aflição que vivemos este ano. “Se eu gritasse uma só vez que
fosse, talvez nunca parasse de gritar. (…) nós que guardamos o grito em segredo
inviolável”. João Cabral foi ofendido no ano de seu centenário, no Itamaraty,
local de seu trabalho como diplomata. Quem o ofendeu não será lembrado na
história, mas o poeta sim, esse ficará. Estará nos rios que ele seguiu, nas
pedras que ele amou, nos brasileiros desvalidos que ele homenageou com seus
versos. “E ainda se me permite mais uma vez indagar: é boa essa profissão na
qual a comadre ora está?” Se a mim fosse dirigida a pergunta, e não à
rezadeira, diria que sim, o jornalismo viveu um grande ano, dando boas
informações, num tempo confuso.
Cada pessoa sabe o que viveu, e houve perdas irreparáveis. Foi difícil sim, mas os oásis nos ajudaram na travessia. O calendário marca o recomeço daqui a algumas horas. Feliz Ano Novo.
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