quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Luis Fernando Verissimo – Retrospectivas

- O Globo / O Estado de S. Paulo

As próximas terão que recorrer à ficção ou ao delírio para contar como foram 2020 e seus desdobramentos

Retrospectivas de fim de ano servem para passar o passado a limpo e organizar nossas lembranças, que, sem elas, seriam histórias sem nexo. O retrospectivista mais desatento da História foi Luís XVI, que, na véspera da Revolução Francesa, escreveu no seu diário: “Tudo calmo, nenhuma novidade no reino”. A tradição de recapitular os principais acontecimentos do ano teria começado no ano 1, quando um viajante no deserto anotou no seu caderno de viagem a presença daquela estranha estrela no céu da Judeia, brilhando mais do que as outras, como que mostrando um caminho, e disse “Epa”.

No jornalismo, uma retrospectiva de fim de ano é obrigatória e fácil de fazer. Basta juntar fatos e feitos que se destacaram durante o ano e pronto. O ano de 2020, que termina hoje, esteve cheio de notícias destacáveis, como todos os anos. É só reuni-las e teremos um típico ano com seus altos e baixos, esperando sua inclusão na retrospectiva. Como todos os anos. Certo?

Você deve estar brincando com os pobres autores de retrospectivas e com a humanidade em geral. Nenhum outro ano na nossa História foi tão diferente dos outros quanto 2020. Nenhuma outra retrospectiva foi — e continua sendo —tão inverossímil. Um vírus mal-intencionado surgiu não se sabe de onde decidido a acabar conosco e, mesmo se não conseguir, a alterar a vida sobre a Terra e a relação entre as pessoas de maneira inédita, com efeitos imprevisíveis no futuro de cada um.

Retrospectivas por vir terão que recorrer à ficção ou ao delírio para contar como foram 2020 e seus desdobramentos. Elas podem muito bem ser sobre a guerra da vacina que fatalmente acontecerá em poucos anos, ricos contra pobres lutando pela sobrevivência.

Prevê-se que retrospectivas do futuro se ocuparão do comportamento de jovens, em 2020 e depois, que desafiaram as recomendações de como enfrentar o vírus assassino e continuaram fazendo festas sem qualquer proteção, sugerindo que o vírus, além de todos os seus crimes, criará uma geração de desinformados, de alienados ou de suicidas.

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