quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Mario Mesquita* - Sobre choques temporários

Valor Econômico

Taxas de inflação persistentemente elevadas com fechamento do hiato do mercado de trabalho podem ensejar mudança perigosa de patamar e de riscos inflacionários

O início da pandemia de covid-19, no primeiro semestre de 2020, ocasionou um choque sem precedentes sobre a economia mundial - com aspectos de choque de oferta, na medida em que afetou processos produtivos, e também de demanda, pois impactou confiança, renda e riqueza das famílias. Ademais, ao impor a necessidade de distanciamento social, a pandemia afetou inclusive a capacidade de monitoramento da economia pelos métodos usuais, e favoreceu o desenvolvimento e uso de indicadores alternativos, tipicamente de alta frequência, para mensurar os seus efeitos.

O impacto inicial foi altamente contracionista e desinflacionário. Antes mesmo da contração da atividade ser capturada pelos dados de PIB, as autoridades, mundo afora, implementaram políticas anticíclicas extremamente agressivas, tanto do lado fiscal quanto monetário. Isso não evitou, nem poderia, um período inicial, em meados de 2020, em que convivemos com atividade e taxas de inflação anormalmente baixas.

Passado um ano, o quadro se alterou dramaticamente. No Brasil, e em vários outros países, ainda que a pandemia não tenha sido plenamente controlada, pressões inflacionárias têm se manifestado de forma intensa.

A fim de monitorar o comportamento da inflação nos anos da pandemia, os economistas do Itaú recorreram a uma decomposição interessante das diferentes fontes de pressão, separando aquelas ocasionadas pelo efeito reabertura (ou normalização), das causadas pelo comportamento de preços de matérias primas e dos efeitos de gargalos de oferta1. A inflação que não é explicada por esses fatores reflete basicamente o hiato do produto, a ancoragem (ou desancoragem) das expectativas e a inércia dos preços - um resíduo que tende a ser mais persistente, e cujo comportamento deve ser de particular atenção para as autoridades monetárias.

O que essa decomposição mostra é que a inflação global tem sido liderada pelos efeitos do comportamento de preços de matérias primas e pelos gargalos de oferta (o impacto sobre o setor automotivo tem sido particularmente problemático, sob esse aspecto). A maioria dos países tem sentido os efeitos da elevação dos preços de matérias primas, em parte, mas não exclusivamente, por um efeito-base.

Considerando os EUA, cuja dinâmica inflacionária influencia preços de ativos em escala global, a inflação de commodities foi 12,3% nos doze meses até junho passado. Mais importante, no caso americano, têm sido os efeitos dos gargalos de oferta - inflação de 26,3% até junho. O país tem convivido com uma combinação de razoável progresso no programa de vacinação - ainda que ameaçado recentemente pela disseminação da variante Delta - e maciços estímulos fiscais, em contexto de política monetária altamente estimulativa. Uma consequência tem sido uma alta forte dos preços de itens associados à normalização ou reabertura econômica (como hotelaria e passagens aéreas), com inflação de 6,9% até junho. A inflação residual, por sua vez, encontra-se em 2%, um pouco abaixo do observado no pior momento da crise, no segundo trimestre de 2020.

A China, por sua vez, mostra inflação geralmente contida, destoando um pouco da tendência global, com exceção para a alta de 10,1% dos preços de matérias primas.

No caso do Brasil, considerando o IPCA-15 de julho, o processo inflacionário tem sido liderado por preço de matérias primas, com alta de 23,6%, seguido pelo efeito de gargalos, com 9,7%. A inflação de reabertura, consistente com o ritmo gradual de vacinação, era de 5,9%. O resíduo, mais relevante para a política monetária, estava em 3,7%. Essa inflação residual situou-se um pouco abaixo de 2% no auge da desinflação da pandemia, em agosto de 2020, mas vem mostrando aceleração consistente desde então. E é esse comportamento que deve preocupar mais a autoridade monetária.

A leitura que parece predominar entre os bancos centrais é de que a inflação atual elevada é essencialmente transitória, derivando em importante medida dos impactos da pandemia sobre processos produtivos e canais de distribuição, bem como desequilíbrios localizados entre oferta e demanda. A princípio, as autoridades não devem reagir a pressões inflacionárias transitórias. No entanto, em muitos mercados emergentes as taxas básicas de juros estão em alta.

Isto parece refletir duas razões para preocupação. Choques temporários tendem a se mostrar persistentes quando sensibilizam as expectativas inflacionárias, e passam a ser embutidos nos planos das famílias e empresas. Historicamente, a ancoragem das expectativas inflacionárias tende a ser mais frágil nas economias emergentes do que nas avançadas.

Note-se também que, na maioria dos países, inclusive por aqui, o mercado de trabalho ainda apresenta bastante ociosidade. Por ora, a ociosidade no mercado de trabalho atua para conter pressões inflacionárias. Com o tempo, contudo, a combinação de taxas de inflação persistentemente elevadas com fechamento do hiato do mercado de trabalho pode ensejar, sim, uma mudança perigosa de patamar e de riscos inflacionários. E o perigo tende a ser maior em países, como o Brasil, com histórico inflacionário ruim.

1. Macro Visão: inflação de commodities, gargalos e reabertura no mundo. Disponível no Aplicativo Itaú Análises Econômicas

*Mario Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco.

Nenhum comentário: