O Globo
Se nada de extraordinário acontecer, o
projeto de lei que propõe o voto impresso deverá ser derrubado hoje na
Comissão Especial da Câmara criada para discuti-lo. Os deputados que já se
declararam contra o projeto são maioria, e mesmo o presidente da comissão, o
bolsonarista Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), reconhece que aprovar o voto
impresso para 2022 é praticamente impossível. Ainda assim, o clima entre esses
parlamentares não é de festa.
— Vamos ganhar na Câmara, mas ele
(Bolsonaro) já ganhou o debate público —comentou um deles na tarde de ontem.
Não, o deputado não estava falando de uma conquista numérica. A última pesquisa de opinião divulgada pelo Datafolha sobre o assunto, em janeiro passado, mostra que 73% da população confia no sistema e o apoia. A questão é outra: desde que Bolsonaro começou a disseminar dúvidas sobre a urna eletrônica e a espalhar suspeitas de que esteja em curso uma armação para tirar dele a reeleição, a tese vem ganhando adeptos.
A própria existência de pesquisas de
opinião para medir o que os brasileiros pensam sobre um assunto que há até
pouco tempo nem sequer se debatia já mostra que o presidente plantou uma
semente na cabeça de certos grupos. O Instituto Ideia Big Data, um dos únicos
que fazem levantamentos periódicos sobre o tema, constatou que a proporção de
pessoas que “confiam muito” na urna eletrônica caiu de 42% em outubro de 2018
para 27% em maio deste ano.
Os que não confiam no sistema, que eram
22%, agora são 33%. Em nichos específicos, como os policiais militares, a
adesão ao discurso bolsonarista é maior. O mesmo Ideia Big Data que mediu a
opinião geral aferiu também a dos PMs. Entre eles, a fatia dos que confiam
muito no sistema eletrônico de votação caiu de 30% para 15% desde 2018.
Em monitoramentos internos, partidos de
esquerda detectaram que, mesmo não tendo sido tão expressivas como outras já
feitas no passado, em torno de pautas distintas, as manifestações do fim de
semana tiveram repercussão positiva em públicos que a oposição sabe que precisa
conquistar.
Está aí a chave da estratégia bolsonarista,
que não deveria mais nos surpreender: o presidente da República não opera no
diapasão da normalidade institucional. Na definição de um integrante do
Centrão, Bolsonaro é um avatar. Uma coisa é o que ele diz para as redes
sociais, as lives, o cercadinho. Outra coisa é o que ele faz na prática. O
avatar brada contra a urna eletrônica, enfrentando o “sistema”, que uniu contra
ele os políticos tradicionais e os ministros do Supremo Tribunal Federal.
O presidente de verdade bajula o Centrão com cargos e rapapés e aceita pagar um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões para
alimentar o mesmo sistema que ele diz combater. O avatar diz defender a
auditoria nas urnas em nome da transparência, enquanto o presidente real manda
decretar sigilo de cem anos para informações comezinhas, como quantas vezes
seus filhos entraram e saíram do Palácio do Planalto durante seu governo. O
avatar prega liberdade e democracia. O presidente real endossa ameaças de
militares à realização das eleições de 2022.
Embora não seja nova, a estratégia ainda
funciona. A discussão do voto impresso serviu para ofuscar as denúncias de
corrupção que pairam sobre o governo e, de quebra, ajudou a mobilizar o
bolsonarista raiz, que andava meio abatido com essas mesmas denúncias.
Além disso, o fato de o presidente perder a
batalha do momento poderá acabar lhe sendo útil em 2022, caso sua
vulnerabilidade política continue aumentando. Foi o que fez Donald Trump quando
se viu em desvantagem na disputa eleitoral do ano passado. Se há uma aposta
certeira a fazer é que esse debate não acaba com a derrota do projeto na
Câmara. Só estamos assistindo ao primeiro round de uma luta que vai pelo menos
até 2022.
Isso não significa que as instituições
devam recuar, transigir ou abrir mão de seu papel: proteger a democracia das
ameaças e mentiras — e promover a transparência de verdade, com ampla prestação
de contas ao público não só sobre as urnas eletrônicas, mas também sobre tudo o
que se refere ao sistema eleitoral. Ao contrário dos líderes populistas que já
nascem como avatares, numa democracia as instituições são feitas para a
perenidade.
Para defendê-las, é preciso entender que
vitórias e derrotas circunstanciais fazem parte do jogo e que a batalha pela
democracia nunca acaba. O caso americano mostra que nem mesmo os mais potentes
avatares conseguem resistir à força das instituições quando elas funcionam a
contento. O avatar a gente troca. As instituições, não.
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