Folha de S. Paulo
A presença de militares na política tem
custos altos e reversão difícil
Mais de uma vez, ao desfechar ataques
desvairados às instituições que garantem a democracia no país, Bolsonaro
invocou o "meu Exército", sugerindo que conta com o apoio das Forças
Armadas para levar a cabo seus intentos liberticidas.
Até aqui, parece haver antes farolagem do
que fundamento nessas falas. Ainda assim, é nítido que desde a ditadura de
1964-1985 os militares brasileiros nunca estiveram tão perto de cruzar a linha
que separa seu papel constitucional do engajamento aberto na disputa política.
A história nunca se repete ao pé da letra; e experiências de outros países costumam viajar mal. Ressalvas feitas, há muito que aprender com o artigo do cientista político americano Harold Trinkunas "As Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela: medo e interesse face à mudança política", recém-publicado pelo Woodrow Wilson Center de Washington.
O estudo trata da politização das
instituições militares sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro e de sua subordinação
aos governos populistas da dupla.
De um lado, isso implicou na doutrinação ideológica nas academias militares, em sistemas de promoção e atribuição de missões que favoreceram o oficialato leal ao chavismo; na reestruturação das Forças com a inclusão formal da Milícia Bolivariana diretamente afeta ao presidente; e no fortalecimento de um vasto sistema de contrainteligência militar que vigia os suspeitos de deslealdade ao regime. De outro lado, vieram as recompensas.
Em especial sob Maduro, militares ocuparam
o centro do poder. Comandam ministérios, governam estados e controlam setores
econômicos estratégicos, como parte da indústria petrolífera, a mineração de
ouro e a distribuição de alimentos. Gerem também o multimilionário comércio de
armas com a Rússia e a China. E não é propriamente um segredo em Caracas que
oficiais de alta patente têm parte com o tráfico internacional de drogas e o
contrabando de mercadorias.
Maduro, ele sim, diz a verdade ao proclamar
que o politizado Exército do país é seu. E este, cúmplice do desastre nacional
que o populismo chavista promoveu, compartilha com o autocrata a
responsabilidade pela destruição de uma democracia que já foi forte o
suficiente para vencer a guerrilha revolucionária e ficar ao largo da onda de
autoritarismo que sufocou a região nos anos 1960-70.
Acima de tudo, os fuzis são hoje o principal obstáculo para a Venezuela voltar por meios pacíficos à normalidade democrática. Por atraente que possa parecer aos brasileiros desiludidos com o sistema, a presença dos militares na política tem custos altos e reversão difícil.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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