Folha de S. Paulo
Que o TSE seja coerente com a fala de
Barroso e não dance a valsa inocente de Fux
Bolsonaro moderado é um unicórnio
flamejante que muitos juram ter visto em algum momento dos últimos 30 anos. As
aparições desse chupa-cabra laranja fosforescente nas madrugadas frias e
escuras do cerrado durante esses dois anos enriqueceram o bestiário
brasiliense. Bastou uma noite de sono sem ronco, um “bom dia” ou um “obrigado”
para observadores concluírem que a besta-fera aceita chamados à razão e à
civilidade.
A expectativa de que um ator político possa ser convencido a fazer o que nunca fez em sua vida adulta, e que possa mudar justamente os modos exitosos que o catapultaram à cúpula do poder, é uma forma de negacionismo psíquico e ético. Mas mesmo que não fosse, e que as disposições de caráter de Bolsonaro fossem maleáveis, a moderação também deixou de fazer qualquer sentido político. Tornou-se uma impossibilidade lógica na estratégia eleitoral.
Por
meio de agressões verbais e ameaças a toda instituição que hoje o expõe e o
desagrada (sobraram a CPI do Senado, o STF e o TSE), Bolsonaro optou pelo
tudo ou nada e cruzou linha irreversível. Sabe que qualquer passo para trás
trairá seus devotos. A essa altura, com o ciclo eleitoral já iniciado, a
moderação não trará nenhum ganho para 2022. No máximo, talvez, um silêncio
momentâneo para seduzir bobos da corte.
A
hipótese de eleições regulares com Bolsonaro na disputa, quando o acirramento
extremista resta como única chance de sobrevivência, já não existe mais. Mesmo
que se cale a partir de hoje, tudo que fez para implodir a legitimidade e
confiança das eleições basta para viciar o processo. Não só politicamente, mas,
juízes nos ouçam, juridicamente também.
Na
abertura do semestre judicial, Luiz Fux embarcou naquela valsa cor-de-rosa. Seu
discurso cometeu o pecado de supor ser Bolsonaro espécime invertebrado do
centrão. “Nunca é tarde para o diálogo e para a razão. Sempre há tempo para o
aprendizado mútuo, para o debate público compromissado com o desenvolvimento do
país... Palavras voam; ações fortificam.” Palavras voaram mesmo, aguardamos as
ações.
Fux, ao estilo de seu antecessor, pela
enésima vez, convida Bolsonaro para uma confraternização de Poderes onde se
possa fazer negociação de constitucionalidade. Isso não tem nada a ver com
controle de constitucionalidade numa separação de Poderes, defendida nas
cartilhas de direito constitucional moderno.
Luís
Roberto Barroso, horas mais tarde, na fala judicial mais empolgante da
história recente, abriu o semestre do Tribunal Superior Eleitoral sem cerimônias.
“O discurso de que ‘se eu perder houve fraude’ não aceita a democracia. (...)
Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias
conspiratórias é conduta antidemocrática.” Suas palavras rejeitaram o
costumeiro autoelogio judicial e anunciaram medidas concretas.
Se
Arthur Lira não vê materialidade de crime de responsabilidade (e, em
contradição a esse juízo de mérito, deixa de cumprir o dever de ao menos
indeferir 120 pedidos de impeachment); se Augusto Aras define a incontinência
do presidente como liberdade de expressão e pensa não ter nada a fazer diante
de evidências de crimes comuns; sobrou a Justiça Eleitoral para investigar
infrações eleitorais e aplicar a sanção de inelegibilidade.
O futuro dirá se atuais ministros do TSE
entenderam a gravidade das palavras de Barroso e terão coragem política e
refinamento jurídico para levar isso adiante. Ou se preferem bailar com Fux, na
melhor tradição constitucional brasileira.
Abrir inquérito para deixá-lo em
banho-maria, num jogo de dissuasão, não vai adiantar. Não há mais tempo.
Concluir o inquérito e julgar eventual ação judicial com a presteza que a
Justiça tem quando quer será a única ação concreta à altura da ameaça presente.
Não será pacífica e sem riscos, apenas menos violenta e com menos riscos do que
a alternativa da leniência.
James Kwak (“The Second-Most Important
Election of our Lifetimes”) alertou que a eleição de Biden foi a segunda mais
importante da história de muitas gerações de norte-americanos. A mais
importante teria sido a anterior. Naquela, Trump foi eleito, a democracia
perdeu e os danos já são grandes demais. Resta reconstruir enquanto o próximo
Trump não vem.
O alerta se aplica ao Brasil. Bolsonaro
voltou ao grito do “parem o roubo” (“stop the steal”). Já havia começado em
2018.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação
Alexander von Humboldt.
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