O Estado de S. Paulo
Não há consenso em como lidar com a atração
do presidente pelo abismo
Os personagens políticos que conquistaram o
poder, não importa o método, e por mais tempo lá ficaram, também não importa
como, são os que menos sofreram da doença que acomete Jair Bolsonaro. É o conhecido fenômeno
da autossugestão, pela qual a concepção de mundo do doente vira uma crença
mística tão enraizada a ponto de que nada o convence de que possa estar
errado.
Esse diagnóstico é amplamente compartilhado
hoje em Brasília nas mais variadas esferas dos poderes, incluindo a volátil
instância dos caciques políticos do Centrão e passando por quase
todos os ministros do STF e tribunais superiores, além
de parte relevante do Alto Comando do Exército. As divergências surgem quando
se trata de definir como lidar com o bravateiro.
Bolsonaro não parece levar em conta fatores reais de poder, pois acha que foi imbuído de missão divina e apenas o Todo-Poderoso decide. Talvez essa concepção de mundo ajude a entender o fato de ele não ter conseguido chegar a dois instrumentos clássicos para qualquer golpe: organização política de massa e/ou capacidade de exercer violência armada. E ter perdido (até mesmo entregado) considerável parte do poder de seu cargo para o Legislativo e o Judiciário.
Assim, para os atores políticos “racionais”
nas instâncias acima mencionadas surge como completamente irracional o contínuo
esforço de Bolsonaro rumo à ruptura institucional, pois o mundo real da relação
das forças de poder indica que disso sairia ele como o principal perdedor. Na
verdade, com sua estatura derretendo em todos os sentidos, já é o grande
derrotado, mas não é assim que ele se vê.
Como lidar, então, com esse personagem que
parece movido por uma inexorável atração pelo abismo? Entre altos oficiais
das Forças Armadas detecta-se o
sentimento de que não vão segui-lo na loucura, mas não estão agindo para
impedi-lo. Depois de contínuas afrontas, o Judiciário deu passos concretos para contê-lo, mas o
tempo consumido por inquéritos no TSE e no STF é muito mais longo do que o
tempo da política. E o PGR não acha que cabe a ele virar a República de pernas
para o ar.
Na política, que é a esfera decisiva,
dividem-se os caciques do Centrão entre os que ainda acham possível tutelar
Bolsonaro, sobretudo depois da mudança na Casa Civil, e os que desistiram dessa
ambição que ninguém de fora da família conseguiu realizar. É uma rachadura que
por enquanto não se amplia, pois, no cálculo cínico desses agentes, os poderes
conquistados pelo Centrão não mudam caso “caia a ficha” e Bolsonaro modere o
comportamento. E ficam do mesmo jeito caso o presidente continue desprezando os
conselhos que está recebendo e prossiga piorando a briga com o
Judiciário.
No fundo, o que todos estão fazendo é
esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. Não existe nos círculos de
poder econômico e político uma disposição clara – nem coordenação nem liderança
nem a “massa crítica” política necessárias – para precipitar qualquer ação de
afastamento de Bolsonaro, por mais que aumente a percepção de que ele está
causando severos danos ao regime democrático, à população e ao País.
É o que torna possível a esse personagem
político seguir padecendo nessa evidente agonia interior, trazida por
conspirações e fantasmas que alimentam impulsos incontroláveis – e que passou a
ser a agonia de todos nós, a agonia das lives patéticas, das frases desconexas
no cercadinho de bajuladores, dos raciocínios tortuosos em entrevistas, das
mentiras descaradas, da omissão diante dos fatos, da ausência de compaixão,
solidariedade, interesse público, projeto de futuro.
A principal agonia talvez seja a de constatar que Bolsonaro não reúne mais condições de realizar qualquer grande transformação, a não ser provocar uma tragédia. A boa notícia é que em história nada é inevitável.
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