O Globo
O fracionamento do país é uma velha arma na
política brasileira, sacada desde os primórdios, ali pelo Império
Depois da tentativa de golpe, o bolsonarismo namora a divisão do país. Vídeos nas redes exaltam estados fanatizados pelo ex-capitão, com autoelogios e provocações, espécie de preparação para uma guerra vizinha. Sedição em marcha. “Brasil acima de tudo”, como pensamento político, é um patriotismo vago e tosco, daqueles que não conseguem viver no mesmo espaço de seus adversários. Daí o ódio contra os nordestinos, de uma região não cooptada e descrita sob preconceito. Ordem do dia: “Rachar para reinar”.
O fracionamento do país é uma velha arma na
política brasileira, sacada desde os primórdios, ali pelo Império. Ao norte e
ao sul ocorreram movimentos separatistas, sob justificativas as mais diversas.
Foram sempre combatidos pelo poder federal. No início da República, os
miseráveis de Antônio Conselheiro apareceram pintados como monarquistas e,
depois, ponta de lança de racha territorial. Era mentira — a fake news da época
— para encobrir centenas de mortes de depauperados seres humanos, como está em
“Os sertões”, de Euclides da Cunha, escritor e engenheiro militar que não se
deixou enganar pela conversa dos companheiros de farda.
A manutenção da integralidade do território
brasileiro nasce sob os portugueses, baseados na diplomacia e na luta por
estabelecer a sua língua, e prossegue como dogma sob os militares brasileiros.
Nacionalismo incentivado por Dom Pedro II e tornado bandeira a partir da Guerra
do Paraguai.
Daí ser curioso bolsões bolsonaristas
retomarem o tema separatista, no embalo da polarização e do rescaldo da derrota
eleitoral de 2022 — apesar do uso criminoso da máquina estatal. Sem esquecer,
por isso o espanto, que Jair Bolsonaro é capitão reformado. Um mau militar,
segundo o general Ernesto
Geisel, mas um tipo gerado em meio ao pensamento verde-oliva.
O delicioso “Rondon: uma biografia”, de Larry
Rohter (o jornalista que Lula da
Silva quis expulsar, ui), descortina movimentos curiosos no final da Monarquia
e início da República. O marechal Cândido Rondon, figuraça, engenheiro militar
e colega de Euclides da Cunha, com a missão de implantar o telégrafo no
Centro-Oeste, passou maus bocados com elementos de sua tropa. Condenados por
diversos crimes, de assassinato a roubos ou até a prosaica vadiagem, eram
sentenciados a pagar suas penas em serviços militares. Lá iam para os cafundós
e matas de Mato
Grosso, sob as ordens de Rondon, bater estacas e puxar fios. Os bons e maus
faziam as mesmas tarefas. Em documentos e cartas, com trechos reproduzidos no
livro, o marechal lamenta a indisciplina e indolência de parte de seus
comandados — rebelados e reticentes diante da hierarquia militar.
Bolsonaro (ainda) não foi condenado a prestar
serviços, mas sua conhecida indisciplina, como a suspeita de planejar explodir
dutos no Rio, guarda parentesco com os dissabores enfrentados pelo Marechal
Rondon. Após um processo disciplinar, lembremos, ele foi reformado e deixou o
Exército. Seu movimento se deu por conta de alegados baixos soldos, portanto,
inconformado à sua maneira com o rito salarial. Se não tiver aumento, eu boto
abaixo — hum.
O separatismo de seus correligionários
poderia ser uma ferramenta de pressão, não tivessem perdido as eleições no voto
majoritário. Mesmo assim, é um instrumento covarde de preconceito e clivagem,
dado que não é incomum quem pense em separar o sul rico do norte pobre. Nos
vídeos, os bolsonaristas se colocam como heróis da pátria, trabalhadores e
vencedores incansáveis, artífices individuais do progresso e riqueza (embora
não tenham produzido um Guimarães Rosa ou João Cabral de Melo Neto). Eles não
se acanham ainda em propagandear um racismo difuso — o sangue branco, de origem
europeia, é saudado como diferencial. Paraná e Santa Catarina —
a região mais afoita — teriam atingido seus IDHs positivos por graça divina,
independente do restante (e impostos) do país. O Nordeste, pelo raciocínio,
seria miserável por preguiça e má intenção. Curioso esse patriotismo Brasil
acima de todos os outros. Já pediram intervenção militar, agora incentivam o
separatismo.
A política brasileira — vale dizer: não só
aqui — trabalha sob o reflexo do maniqueísmo de raciocínio das redes sociais. O
bem x mal. É a lógica da exclusão, do banimento dos contrários. Infelizmente, a
polarização não ajuda, transformada em instrumento de manutenção de poder. O
separatismo bolsonarista não difere da lógica lulista, naquele diapasão já
afamado nos discursos — nós x eles ou ricos x pobres. Com vocês, o Brasil
esquecido por todos.
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