Folha de S. Paulo
A disputa por tempo e quórum é uma das
principais batalhas políticas no Legislativo
O Sistema de Deliberação Remota desponta como
o principal legado da pandemia para
o funcionamento do Legislativo
brasileiro. Originalmente concebido para assegurar o funcionamento do
Congresso durante a emergência sanitária, o sistema permanece ativo mesmo após
o seu fim.
À primeira vista essa medida pode parecer
positiva, contudo negligencia um aspecto fundamental: a disputa por tempo e
quórum (a presença mínima para a abertura e o funcionamento dos trabalhos
legislativos) é uma das principais batalhas políticas no Legislativo.
Concentremo-nos na Câmara dos Deputados, que expandiu a deliberação remota após o Ato da Mesa Diretora nº 154, de fevereiro deste ano.
Embora este ato pareça restringir o
funcionamento semipresencial às sessões de segunda e sexta-feira —que
usualmente não são deliberativas, ele faculta ao presidente da Câmara a
convocação de sessões semipresenciais a seu bel-prazer, desde que com antecedência
mínima de 24 horas.
Mais do que isso, com o registro de presença
remoto permitido até duas horas antes do início da sessão, a construção do
quórum mínimo tornou-se significativamente mais simples.
Os deputados não precisam estar em Brasília,
nem mesmo em frente ao computador no momento da sessão: basta registrar
presença pelo celular horas antes do início dos trabalhos.
Essa flexibilidade facilita a abertura de
sessões para contagem de prazos e realização de votações, mesmo quando os
legisladores estão fora de Brasília, seja em seus estados, em compromisso
locais, ou fazendo lobby internacional, como Eduardo
Bolsonaro, que, ao negociar com o governo dos EUA tarifas
que prejudicam a economia brasileira para defender interesses do pai,
arrisca não retornar ao país por temer ser preso.
Essa dinâmica de flexibilização do
comparecimento e da formação de quórum, ao concentrar poder na figura do
presidente da Câmara, ecoa discussões fundamentais sobre a organização e o
funcionamento de Parlamentos democráticos.
Gary W. Cox, em suas análises sobre o
funcionamento do Poder Legislativo, como "Legislative Leviathan"
(2007, em coautoria com Mathew McCubbins) e "The Organization of
Democratic Legislatures" (2008), destaca que a escassez do tempo de
plenário leva à concessão de poderes especiais de agenda para determinados
atores, como líderes de bancadas, tornando os legisladores desiguais nesse
aspecto, mesmo sendo iguais no poder de voto.
Cox argumenta que as legislaturas
"ocupadas", com alta demanda de temas a serem discutidos e votados,
tendem a evoluir para regras que criam desigualdades no acesso ao tempo de
plenário e diminuem a capacidade dos membros comuns de interferir nos trabalhos
legislativos.
Nesse contexto, o Sistema de Deliberação
Remota, ao simplificar a construção do quórum, não apenas moderniza, mas
sobretudo amplifica o poder de agenda positivo do presidente da Câmara,
permitindo-lhe acelerar ou garantir a inclusão de projetos na pauta, forçando
votações em momentos estratégicos, diminuindo a margem de atuação dos grupos
que possam se opor a esse determinado tema –seja a oposição ou o governo,
reconfigurando assim a dinâmica de poder e controle sobre o processo
legislativo.
*Professora na Escola de Economia de São
Paulo (FGV-EESP) e pesquisadora do Cepesp. Doutora em ciência política pelo
IESP-UERJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário