quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Senado não pode se esquivar do caso Chico Rodrigues – Opinião | O Globo

Conselho de Ética precisa iniciar o exame das denúncias contra o senador, para não alimentar conflito entre poderes

O flagrante dado pela Polícia Federal no senador Chico Rodrigues (DEM-RR) com R$ 32.250 na cueca revelou não apenas outro caso grotesco de assalto ao contribuinte no meio político. Também fornece uma oportunidade de firmar entendimento claro sobre os espaços do Judiciário e do Legislativo na punição desses crimes, para que não haja choque indesejável entre os dois poderes. Um bom sinal foi o recuo ontem do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, ao revogar a liminar que suspendera o mandato do parlamentar, cujo julgamento no plenário estava previsto para hoje.

O pedido de licença de 121 dias feito por Rodrigues cumpre na prática a medida cautelar do ministro. Mas não resolve a questão institucional. Depois de agir por impulso ao emitir a liminar, Barroso, que preside o inquérito sobre o desvio de dinheiro da saúde em que Rodrigues foi apanhado, se viu compelido a levar o caso ao plenário. O objetivo implícito era não desencadear outra crise como a deflagrada pela libertação monocrática do traficante internacional André do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Mesmo que Barroso não tivesse recuado, a regra que vale para o caso de Rodrigues foi decidida pelo próprio Supremo, quando julgou uma ação dos partidos PP, PSC e SD sobre o afastamento do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara em 2016. Ficou decidido na ocasião que deve ser submetida ao Congresso toda medida que impossibilite o exercício regular do mandato por um parlamentar investigado. É o mais razoável para evitar intromissão de um poder no outro.

Se Rodrigues não renunciar, portanto, os senadores não podem se furtar à responsabilidade de julgá-lo. O pedido de licença não passa de uma manobra de evasão, de modo a dar tempo para articulações que adiem o recebimento das denúncias indefinidamente. Funciona assim em Brasília.

O certo é o Senado convocar o quanto antes seu Conselho de Ética para examinar o processo. Há uma fila de casos no Conselho, o mais célebre envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e suas “rachadinhas” de quando era deputado estadual na Alerj.

O Conselho foi desativado devido à pandemia, mas a experiência das sessões plenárias virtuais no Congresso mostra que é perfeitamente possível às comissões funcionar numa emergência. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que anda submerso, precisa voltar à tona para, com as lideranças partidárias, se definir diante do escândalo do desvio do dinheiro da saúde por um dos seus guardiões (Rodrigues fazia parte da comissão encarregada de fiscalizar os gastos na pandemia).

A investigação revelou a conexão no Congresso com a onda de corrupção em torno da fartura de dinheiro liberado pela União para o enfrentar o vírus. Se os senadores querem evitar outro choque entre poderes, é a eles que cabe a iniciativa de punir Rodrigues com a perda do mandato. À Justiça, cabe cuidar das demais punições.

É um erro excluir a chinesa Huawei do leilão da telefonia celular 5G – Opinião | O Globo

Não faz sentido privar empresas e consumidores brasileiros de produtos melhores e mais baratos

Os acordos para facilitar o comércio dos Estados Unidos com o Brasil não escondem o motivo real da presença do conselheiro de segurança nacional Robert O’Brien no país: pressionar o governo Bolsonaro a excluir a chinesa Huawei do leilão da telefonia celular de quinta geração (5G), previsto para 2021.O governo americano decidiu financiar operadoras brasileiras que usarem equipamentos das concorrentes e até as que trocarem redes Huawei já existentes.

A pressão americana contra o 5G chinês tem surtido efeito. Países como Coreia do Sul, Austrália, Reino Unido e, ontem, Suécia já anunciaram veto à Huawei. No caso do Brasil, seria um erro. O principal motivo: a tecnologia chinesa é superior e 30% mais barata que a concorrente. Equipamentos Huawei operam há décadas no país sem sobressaltos. Não faz sentido privar empresas e consumidores brasileiros de produtos melhores e mais baratos.

É um espantalho o argumento de que as redes chinesas abririam o país a espiões de Pequim. A última espionagem comprovada no Brasil era promovida pela NSA americana — fato pelo qual Joe Biden, então vice, veio pedir desculpas a Dilma Rousseff, então presidente. Biden, favorito a derrotar Donald Trump daqui a duas semanas, seria, por sinal, o principal beneficiário de uma decisão de Bolsonaro contra os chineses, já que em nada mudaria a posição americana no tabuleiro do 5G.

Está em jogo uma batalha pela infraestrutura tecnológica que permitirá o maior salto de produtividade deste século. Os americanos estão interessados em controlar as aplicações fabulosas do 5G, de carros autônomos a cirurgias remotas. Por operar em frequência de uso limitado nos Estados Unidos, a tecnologia chinesa impõe obstáculo ao avanço americano. O Brasil precisa tirar a maior vantagem possível da atratividade de seu mercado na barganha. Para excluir a China da disputa, o governo americano precisaria apresentar compensação bem superior.

O alinhamento do Itamaraty com Trump pouco nos rendeu até agora. Não aliviou restrições ao aço, etanol e produtos brasileiros. Os Estados Unidos têm perdido participação na nossa balança comercial, enquanto a China se consolidou como maior parceiro e comprador de produtos agrícolas. É também a economia que melhor tem reagido à crise da pandemia.

Nas redes bolsonaristas, o ódio irracional à China se estende do 5G às vacinas. Por óbvio, o Brasil deve condenar a ditadura comunista, a crueldade imposta aos uigures de Xinjiang, a censura e a perseguição religiosa. Mas isso nada tem a ver com centrais telefônicas ou softwares que põem o 5G para funcionar. Se empresas brasileiras quiserem comprar a tecnologia chinesa, não há motivo razoável para impedir.

Um pacote fechado com pressão – Opinião | O Estado de S. Paulo

É bem-vindo o pacote comercial recém-fechado com os EUA, mas é cedo para se apostar num acordo de livre comércio.

É bem-vindo o pacote comercial recém-fechado com os Estados Unidos, mas é muito cedo para apostar num acordo de livre comércio. Este é um assunto muito mais complicado, tecnicamente, e muito mais difícil do ponto de vista político. Com ou sem Donald Trump na Casa Branca, será preciso conseguir apoio de republicanos, democratas, empresários de vários setores e grupos ambientalistas e defensores dos direitos humanos. Se o democrata Joe Biden estiver na presidência, obstáculos poderão surgir mais prontamente. Ele já deixou clara a intenção de subordinar a cooperação com o Brasil, na área econômica, à preservação das florestas pelo governo brasileiro.

O pacote sobre facilitação de comércio, melhoria regulatória e combate à corrupção pode ser muito útil aos dois países. Qualquer medida para tornar mais simples e ágeis os procedimentos comerciais – por exemplo, com a redução da burocracia – pode resultar em ganhos importantes. Reformas profundas podem cortar até 14,5% dos custos de uma operação comercial, no Brasil, segundo cálculo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mencionado em nota dos Ministérios da Economia e de Relações Exteriores.

Há muito espaço para avançar além das alterações implantadas nos últimos anos. Na área regulatória, o acordo está em linha, segundo a nota, com esforços para tornar o ambiente de negócios mais transparente, mais aberto à concorrência e menos sujeito à intervenção estatal. Mas, apesar dessas e de outras qualificações apresentadas pelo Executivo, o compromisso Brasil-Estados Unidos é uma extensão do acordo de facilitação de comércio aprovado em dezembro de 2013, em Bali, em conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Seria estranho se as atuais administrações americana e brasileira, conhecidas por sua aversão ao multilateralismo, destacassem a importância e a precedência da OMC, um dos pilares da ordem multilateral, ao anunciar seu acordo de facilitação de comércio, mudança regulatória e combate à corrupção. Mas esse é o ponto menos importante, neste momento. Se os dois lados cumprirem os novos compromissos, Brasil e Estados Unidos ganharão, embora ainda haja um longo e difícil caminho, é preciso lembrar, até um acordo de livre comércio.

Planos mais ambiciosos, de toda forma, dependerão de quem esteja, a partir de 2021, na chefia do Executivo americano. O nome será conhecido em breve, depois da eleição presidencial prevista para novembro. Se Trump for reeleito, será prudente lembrar seus padrões de política comercial.

O Brasil já foi atingido por medidas protecionistas absolutamente injustificáveis. O presidente Jair Bolsonaro aceitou sem protesto os desaforos comerciais, confirmando sua subordinação ao líder Trump. Mas pelo menos os negociadores, se mantiverem alguma fidelidade aos melhores padrões do Itamaraty, hoje renegados, deverão estar prontos para uma interlocução difícil.

O acordo de facilitação de comércio foi o capítulo positivo das últimas conversações. Mas a delegação enviada a Brasília tinha uma agenda mais ampla. Para cumpri-la, seria preciso convencer as autoridades brasileiras a excluir os chineses do leilão para fornecimento da tecnologia 5G.

O trabalho foi liderado pelo conselheiro de Segurança Nacional Robert O’Brien. Sua conversa incluiu uma ladainha conhecida: se o trabalho for entregue à empresa Huawei, dados do governo e de empresas brasileiras poderão ser capturados pelos chineses.

Como parte do esforço de convencimento, a diretora da Corporação Financeira para o Desenvolvimento Internacional, Sabrina Teichman, acenou com financiamentos a operadoras brasileiras para comprar equipamentos de fornecedores ocidentais. A embaixada chinesa reagiu e devolveu ao governo dos Estados Unidos a acusação de espionagem.

Mais uma vez o Brasil ficou no meio da disputa entre Washington e Pequim. Falta conferir se Brasília decidirá a questão do 5G, afinal, levando em conta afinidades ideológicas ou os interesses concretos do Brasil.

Desleixo com as agências reguladoras – Opinião | O Estado de S. Paulo

Rapidez na aprovação de novos diretores denota que Senado cumpriu só formalidade.

Não foram necessárias mais do que oito horas para que os membros da Comissão de Infraestrutura do Senado aprovassem 16 nomeações do presidente Jair Bolsonaro para cargos de diretoria de agências reguladoras. Isso significa que, em média, um novo diretor foi sabatinado e aprovado pelo colegiado em apenas meia hora. O açodamento beira o desleixo e denota que o Senado tomou uma de suas prerrogativas constitucionais (art. 52, inciso III, alínea f) como mera formalidade, abrindo mão de um escrutínio mais detido das qualificações dos indicados.

O processo de aprovação dos diretores das agências reguladoras pelo Senado não está inscrito na Constituição e na Lei n.º 13.848/2019 à toa. Ele é a garantia – ou deveria ser – de que cargos tão relevantes, em que pese a natureza política das indicações, só serão preenchidos por aqueles que os senadores entenderem ter os atributos necessários para bem desempenhar sua função principal, qual seja, atuar em um ponto equidistante em relação aos interesses dos usuários e das empresas prestadoras de serviços. Daí advém a força das agências reguladoras, tal como foram concebidas, somada à independência desses órgãos em relação ao governo de turno. Afinal, são órgãos de Estado.

Uma vez aprovados pela comissão, os nomes dos indicados por Bolsonaro para cargos na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e Agência Nacional de Transportes Aquáticos (Antaq) deverão ser referendados pelo plenário do Senado.

Além dos 16 indicados para as agências citadas, também foram aprovados pela Comissão de Infraestrutura do Senado os cinco diretores da nova Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão que será responsável por editar e fiscalizar o cumprimento das normas previstas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Três dos indicados pelo presidente Jair Bolsonaro para a diretoria da ANPD são militares.

O ritmo das comissões do Senado no dia 19 passado foi de “mutirão”. A Comissão de Assuntos Sociais levou apenas três horas para aprovar quatro indicações para a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Comissão de Meio Ambiente aprovou a toque de caixa uma indicação para a Agência Nacional de Águas (Ana).

Não está em questão aqui a competência de cada um dos 21 indicados pelo presidente Bolsonaro para ocupar cargos de direção nas agências reguladoras, até porque a rapidez com que seus nomes foram aprovados pelo Senado não permite essa avaliação. Mas é exatamente essa dúvida que não poderia existir, pois dá margem para qualquer tipo de inferência. As agências reguladoras estão sendo usadas para acomodar apaniguados? Com que interesse? Os novos diretores vão atuar pautados pelo equilíbrio que deve haver entre interesses dos cidadãos e das empresas que prestam os serviços que as agências são responsáveis por regular? Não se sabe.

Essa nuvem de suspeição só aprofunda o processo de desvirtuamento das agências reguladoras tais como foram concebidas na década de 1990. O atual governo está mantendo o que parece já ter se tornado uma infeliz tradição. Basta lembrar que durante os governos do PT se deu uma total desmoralização desses órgãos, tidos por Lula da Silva e Dilma Rousseff como usurpadores de competências do Poder Executivo. Ou seja, a velha confusão entre órgãos de Estado e de governo.

O Senado não ajuda a fortalecer as agências reguladoras ao abrir mão de uma rigorosa sabatina dos indicados para seus cargos diretivos. Além disso, os nomes de muitos desses indicados adormeciam há meses nos escaninhos da Casa.

É preciso ficar claro de uma vez por todas que as agências reguladoras não são cabides de emprego e não devem estar submetidas aos interesses de governantes de turno. Elas servem ao interesse público. O presidente Bolsonaro já disse que tinha intenção de exercer “algum poder de influência nessas agências”. Cabia ao Senado impedir que isso acontecesse.

O papel do poder público no saneamento – Opinião | O Estado de S. Paulo

É no atendimento às localidades mais carentes que este papel é mais indispensável.

Por consenso geral, em que pesem os protestos de grupos de interesse corporativos e facções políticas retrógradas, o novo marco do saneamento é um extraordinário avanço num setor que, mais do que nenhum outro, expõe as desigualdades do Brasil. São quase 100 milhões de brasileiros (47% da população) sem acesso à coleta de esgoto e 35 milhões sem água tratada.

Entre as muitas inovações do marco, destacam-se três. Primeiro, a centralização da regulação na esfera federal, cabendo à Agência Nacional de Águas (ANA) uniformizar as normas atualmente pulverizadas entre milhares de municípios. Em segundo lugar, a exigência de licitação e da adesão a metas para fechar novos contratos ou renovar os vigentes. Por fim, a possibilidade da montagem de blocos regionais de municípios.

Tais mudanças devem garantir, a um tempo, mais segurança jurídica e mais competitividade, ajudando a atrair investimentos e promover a eficiência e a universalização do saneamento. A terceira, em particular, tem o intuito de proporcionar ganhos de escala e viabilizar o saneamento em pequenos municípios, compensando suas carências técnicas, administrativas e financeiras. Seguindo um modelo já aplicado, por exemplo, na concessão de rodovias, a ideia é combinar num único bloco localidades rentáveis e deficitárias, de maneira que as primeiras subsidiem, em alguma medida, a implementação e gestão da infraestrutura nas segundas.

Do ponto de vista social, é preciso especial atenção a este mecanismo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alerta para a situação fiscal delicada dos muitos municípios endividados e com limitações para investir. Segundo Gesmar dos Santos, um dos responsáveis pela pesquisa, historicamente “não há regularidade nos aportes municipais para as melhorias traçadas no Plano Nacional de Saneamento Básico. Enquanto essas lacunas orçamentárias não forem preenchidas, haverá entraves para o progresso no setor”.

Um dos problemas que precisarão ser enfrentados pela ANA e pelo Ministério de Desenvolvimento Regional na regulação dos blocos regionais é a função das tarifas. Elas servirão apenas para sustentar a operação ou serão previstas também para financiar investimentos? Tarifas demasiado baixas podem inviabilizar o negócio para as empresas prestadoras de serviços. Por outro lado, tarifas demasiado altas podem impactar a renda e o bem-estar dos cidadãos. O equilíbrio dependerá de uma sintonia fina entre a legislação setorial e arranjos político-administrativos complexos.

Os municípios com maior déficit, a zona rural e a população vulnerável exigem particular apoio do poder público. Como destaca o Ipea, além de uma reforma tributária consistente que aumente a capacidade de arrecadação e investimento municipal, a União precisa priorizar investimentos nessas localidades.

Do ponto de vista das empresas, é preciso considerar os mecanismos de ajuda estatal vigentes, como, por exemplo, as garantias à tomada de financiamento; as isenções de tributos (sobre o consumo de energia no saneamento, sobre a aquisição de equipamentos e produtos e outros); ou a ajuda em projetos e financiamentos impositivos ligados à abertura de capital. Do ponto de vista do consumidor, um dispositivo importante para alcançar a população mais pobre é a tarifa social, pela qual os pequenos consumidores pagam taxas reduzidas. Contudo, esse mecanismo solidário ainda pode ser aprimorado e expandido. Um levantamento do Ministério de Desenvolvimento Regional aponta que entre 34 concessionárias pesquisadas, apenas 13 praticam essa tarifa. Segundo o Ipea, “há necessidade de definição de formato, responsabilidades, fiscalização e análise dos efeitos dos subsídios – tanto para os cidadãos quanto para as empresas, sejam elas públicas ou privadas”.

Se a proposta do novo marco é, por meio de uma boa regulamentação pública, promover a participação da iniciativa privada no setor, é no atendimento aos municípios e comunidades mais carentes que se faz indispensável o maior protagonismo do poder público.

A querela da vacina – Opinião | Folha de S. Paulo

Polarização sobre obrigatoriedade é prematura e ameaça política de imunização

Antes de poder contar com uma vacina para deter a Covid-19, o Brasil precisa imunizar-se contra a politização da saúde pública. Na marcha atual de insensatez liderada pelo presidente Jair Bolsonaro, quando uma das centenas de vacinas em desenvolvimento se provar segura e eficaz poderá encontrar resistências descabidas pela frente.

Bolsonaro precipitou-se ao lançar de público uma discussão sobre tornar ou não obrigatória uma vacina que nem mesmo existe. Não é a primeira vez, e decerto não será a última, que atrapalha autoridades de saúde na condução técnica da reação à pandemia, como em suas investidas contra o distanciamento social e a favor da cloroquina.

O debate fora de hora polarizou-se porque o Planalto ensaiou minar a confiança no imunizante patrocinado pelo Executivo paulista.

O próprio governador João Doria (PSDB) dá mostras de que pretende faturar politicamente a vacina a ser fabricada pelo Instituto Butantan, em parceria com a Sinovac, e se aventurou anunciando que deseja torná-la obrigatória.

Não é coisa que se defina a esta altura dos ensaios clínicos. Alguns dos preparados em teste já se mostraram seguros para uso humano, mas nenhum demonstrou ainda eficácia nem o grau de imunização que poderá conferir, informação decisiva para traçar o tipo de campanha necessária para obter o melhor benefício coletivo.

A questão da obrigatoriedade se torna secundária, ademais, diante das evidências de que o público brasileiro se inclina fortemente por aceitar a imunização. Pesquisa nacional Datafolha feita em agosto constatou que 89% dos entrevistados pretendiam vacinar-se contra o coronavírus.

Estudo científico publicado nesta terça-feira (20) na revista Nature Medicine ouviu 13.426 pessoas em 19 países, em junho, sobre confiança na futura imunização. Na média, 71,5% se disseram muito ou um tanto inclinados a tomar a vacina, e o Brasil aparece muito bem no painel, com 85,4% de adesão, atrás somente da China (88,6%).

Apesar das sementes de dúvida plantadas pelo presidente, o Ministério da Saúde, após omissão inicial, anunciou por fim que vai incorporar a vacina Sinovac/Butantan no Programa Nacional de Imunizações e fechou acordo para a compra de 46 milhões de doses. Fez o que se deve fazer.

O país apresentou até aqui níveis elevados de cobertura imunizante porque o Sistema Único de Saúde realiza trabalho logístico e de comunicação reconhecido internacionalmente como excelente.

Se o governo federal desonrar essa tradição, caberá a estados e municípios levar adiante as campanhas de conscientização, melhor recurso para inspirar confiança.

Bolívia democrática – Opinião | Folha de S. Paulo

Eleição pode restaurar normalidade abalada desde manobras de Evo Morales

Com participação popular expressiva e sem registrar incidentes de monta, o pleito realizado na Bolívia no domingo (18) constituiu o primeiro e fundamental passo para que o país regresse à normalidade democrática, abalada desde as tentativas do ex-presidente Evo Morales de se perpetuar no poder.

A provável vitória contundente do ex-ministro da economia de Morales, Luis Arce, do MAS, dá a ele a legitimidade necessária para se dirigir a uma sociedade polarizada e enfrentar os desafios da crise econômica gerada pela pandemia de Covid-19 —que deve levar a uma queda de 7,9% do PIB neste ano, segundo projeção.

Para o sucesso da eleição concorreu, sem dúvida, a atitude conciliatória dos envolvidos no processo. Tanto a presidente interina, Jeanine Añez, como o segundo colocado, Carlos Mesa, congratularam Arce pela vitória antes de finda a apuração, afastando a possibilidade de contestação do resultado e abrindo caminho para uma transferência de poder sem sobressaltos.

Arce, por sua vez, apelou à unidade nacional em suas primeiras declarações, evitando qualquer tipo de revanchismo. Afirmou que o MAS aprendeu com a experiência passada e que o partido corrigirá seus erros na nova administração —numa autocrítica que se distancia da retórica de Morales enquanto esteve à frente do país.

No governo de 2006 a 2019, o ex-presidente combinou a busca por maior inclusão de grupos indígenas e uma política econômica pragmática, que logrou reduzir a pobreza de 60% para 35% da população, com um apego ao cargo próprio do caudilhismo latino-americano.

Suas manobras para se manter no poder, desrespeitando as regras constitucionais e o resultado de uma consulta popular, provocaram uma tensão social que atingiu o ápice nas controvertidas eleições do ano passado, maculadas por suspeitas de fraude.

Os distúrbios então desencadeados levaram à destituição de Morales, após pressão das Forças Armadas. À sua saída seguiu-se um problemático governo interino, que perdurou por um ano sob acusações de revanchismo.

Espera-se que esse passado deplorável possa começar a ser superado a partir de agora. Para tanto, é também crucial que Morales, hoje exilado na Argentina e com retorno à Bolívia esperado para logo, acomode-se no papel de ex-líder e se abstenha de tentar intervir no governo de seu ex-comandado.

Mesmo na pandemia, mortes violentas voltam a aumentar – Opinião | Valor Econômico

Sem uma política de segurança adequada, uma Justiça eficiente, e com um presidente que gosta de fazer “arminhas”, a situação só tende a piorar

Não bastasse a violência do novo coronavírus, com seu cortejo de 154 mil vítimas, o número de assassinatos no Brasil voltou a crescer no primeiro semestre em relação ao mesmo período de 2019. Foram 25.712 mortes, 7,1% mais, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, elaborado pelo Forum Nacional de Segurança Pública. É um prenúncio muito ruim, porque nos dois últimos anos as mortes violentas vinham em queda. As armas de fogo foram o instrumento de 3 em cada 4 assassinatos.

A parada súbita provocada pela pandemia permitiu a melhoria de alguns indicadores, pelo isolamento social e restrição à mobilidade. Os crimes contra o patrimônio de empresas e bancos se reduziram, assim como o roubo de carros. A redução dos número de veículos nas estradas permitiu uma fiscalização mais acurada, com o aumento das apreensões de maconha e cocaína. O número de estupros caiu, embora de um nível muito elevado. Em 2019, ocorreu um a cada 8 minutos, com 66.123 vítimas - 30% delas crianças com até 10 anos, e 58% com até 13 anos. Com o confinamento forçado, o número de chamadas por violência doméstica aumentou, assim como os casos de feminicídio.

O presidente Jair Bolsonaro, um propagandista aberto do uso de armas, por vários decretos, conseguiu abrir brechas em restrições que vinham conseguindo diminuir a quantidade de mortes violentas. Sua ascensão foi acompanhada pela eleição de governadores com ideias semelhantes, como Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, que pregava “tiros na cabecinha” de bandidos e que deverá ser desalojado do Palácio Laranjeiras acusado por falcatruas com dinheiro público.

A liberação de armas veio acompanhada de um esforço do governo para impedir rastreamento de munições e da tentativa de permitir que armas antes privativas do Exército e polícia fossem liberadas. Uma avant-première dessa política pode já ser a alta de assassinatos mesmo durante a pandemia.

A facilidade de obter armas torna mais difícil e arriscada a vida dos policiais e abre caminho a que mais armamentos parem nas mãos das milícias, que ocupam já 57,5% do território da capital fluminense, um quarto do território da cidade, onde habitam mais de 2 milhões de cariocas (pesquisa do Grupo de Estudo dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense). A suposição de que em suas ações encontrarão cidadãos armados aumentou a violência de polícias já propensas a atirar primeiro, como a do Rio de Janeiro e de São Paulo, responsáveis por quase metade (42%) dos 3.181 mortos em intervenções policiais no primeiro semestre do ano (alta de 6%).

O número de mortes violentas, porém, diminui no Rio, subiu em São Paulo e seguiu o rastro das disputas entre organizações criminosas pelo controle do tráfico de drogas no Norte e Nordeste. Ele cresceu 96,6% no Ceará, palco recente de motins policiais, 18,5% no Maranhão, 19,2% na Paraíba e 13,4% em Rondônia.

O combate ao crime organizado subiu de padrão com as operações da Polícia Federal para asfixiar o fluxo financeiro das atividades do tráfico. No fim de setembro, a PF conseguiu interditar 70 empresas, em geral postos e distribuidora de gasolina, e bloquear R$ 730 milhões do Primeiro Comando da Capital (PCC). O caminho das ações de inteligência financeira prometem resultados cada vez mais relevantes.

O incentivo ao armamento da população, por outro lado, nada tem de inteligência e a força bruta já se provou ineficaz. Os sinais do governo federal e de alguns governadores provavelmente tiveram efeito no desestímulo à apreensão de armas, e certamente estimularam sua aquisição. As armas registradas pularam de 225.276 em 2019 para 496.172 em agosto, um aumento de 120,3%. Aquelas em posse de atiradores desportivos aumentaram de 171,9 mil para 356 mil - quantidade suficiente para armar todos os 334 mil homens do efetivo das Forças Armadas. O Distrito Federal elevou em 538,6% o arsenal privado - que agora atingiu uma arma por 11 habitantes.

A força bruta não diminui a violência e abarrota cadeias. A população carcerária está dobrando a cada dez anos e soma hoje 755 mil pessoas. Presos provisórios, que aguardam sentença, são nada menos de 229.823, que não deveriam estar aonde estão. O déficit estimado de vagas é 312.295. Sem uma política de segurança adequada, uma Justiça eficiente, e, ademais, com um presidente que gosta de fazer “arminhas” com as mãos, a situação só tende a piorar.

Nenhum comentário: