Conselho
de Ética precisa iniciar o exame das denúncias contra o senador, para não
alimentar conflito entre poderes
O
flagrante dado pela Polícia Federal no senador Chico Rodrigues (DEM-RR) com R$
32.250 na cueca revelou não apenas outro caso grotesco de assalto ao
contribuinte no meio político. Também fornece uma oportunidade de firmar
entendimento claro sobre os espaços do Judiciário e do Legislativo na punição
desses crimes, para que não haja choque indesejável entre os dois poderes. Um
bom sinal foi o recuo ontem do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, ao
revogar a liminar que suspendera o mandato do parlamentar, cujo julgamento no
plenário estava previsto para hoje.
O
pedido de licença de 121 dias feito por Rodrigues cumpre na prática a medida
cautelar do ministro. Mas não resolve a questão institucional. Depois de agir
por impulso ao emitir a liminar, Barroso, que preside o inquérito sobre o
desvio de dinheiro da saúde em que Rodrigues foi apanhado, se viu compelido a
levar o caso ao plenário. O objetivo implícito era não desencadear outra crise
como a deflagrada pela libertação monocrática do traficante internacional André
do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello.
Mesmo
que Barroso não tivesse recuado, a regra que vale para o caso de Rodrigues foi
decidida pelo próprio Supremo, quando julgou uma ação dos partidos PP, PSC e SD
sobre o afastamento do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara em 2016.
Ficou decidido na ocasião que deve ser submetida ao Congresso toda medida que
impossibilite o exercício regular do mandato por um parlamentar investigado. É
o mais razoável para evitar intromissão de um poder no outro.
Se
Rodrigues não renunciar, portanto, os senadores não podem se furtar à responsabilidade
de julgá-lo. O pedido de licença não passa de uma manobra de evasão, de modo a
dar tempo para articulações que adiem o recebimento das denúncias
indefinidamente. Funciona assim em Brasília.
O
certo é o Senado convocar o quanto antes seu Conselho de Ética para examinar o
processo. Há uma fila de casos no Conselho, o mais célebre envolvendo o senador
Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e suas “rachadinhas” de quando era deputado
estadual na Alerj.
O
Conselho foi desativado devido à pandemia, mas a experiência das sessões
plenárias virtuais no Congresso mostra que é perfeitamente possível às
comissões funcionar numa emergência. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre
(DEM-AP), que anda submerso, precisa voltar à tona para, com as lideranças
partidárias, se definir diante do escândalo do desvio do dinheiro da saúde por
um dos seus guardiões (Rodrigues fazia parte da comissão encarregada de
fiscalizar os gastos na pandemia).
A
investigação revelou a conexão no Congresso com a onda de corrupção em torno da
fartura de dinheiro liberado pela União para o enfrentar o vírus. Se os
senadores querem evitar outro choque entre poderes, é a eles que cabe a
iniciativa de punir Rodrigues com a perda do mandato. À Justiça, cabe cuidar
das demais punições.
É
um erro excluir a chinesa Huawei do leilão da telefonia celular 5G – Opinião |
O Globo
Não
faz sentido privar empresas e consumidores brasileiros de produtos melhores e
mais baratos
Os
acordos para facilitar o comércio dos Estados Unidos com o Brasil não escondem
o motivo real da presença do conselheiro de segurança nacional Robert O’Brien
no país: pressionar o governo Bolsonaro a excluir a chinesa Huawei do leilão da
telefonia celular de quinta geração (5G), previsto para 2021.O governo
americano decidiu financiar operadoras brasileiras que usarem equipamentos das
concorrentes e até as que trocarem redes Huawei já existentes.
A
pressão americana contra o 5G chinês tem surtido efeito. Países como Coreia do
Sul, Austrália, Reino Unido e, ontem, Suécia já anunciaram veto à Huawei. No
caso do Brasil, seria um erro. O principal motivo: a tecnologia chinesa é
superior e 30% mais barata que a concorrente. Equipamentos Huawei operam há
décadas no país sem sobressaltos. Não faz sentido privar empresas e
consumidores brasileiros de produtos melhores e mais baratos.
É
um espantalho o argumento de que as redes chinesas abririam o país a espiões de
Pequim. A última espionagem comprovada no Brasil era promovida pela NSA
americana — fato pelo qual Joe Biden, então vice, veio pedir desculpas a Dilma
Rousseff, então presidente. Biden, favorito a derrotar Donald Trump daqui a
duas semanas, seria, por sinal, o principal beneficiário de uma decisão de
Bolsonaro contra os chineses, já que em nada mudaria a posição americana no
tabuleiro do 5G.
Está
em jogo uma batalha pela infraestrutura tecnológica que permitirá o maior salto
de produtividade deste século. Os americanos estão interessados em controlar as
aplicações fabulosas do 5G, de carros autônomos a cirurgias remotas. Por operar
em frequência de uso limitado nos Estados Unidos, a tecnologia chinesa impõe
obstáculo ao avanço americano. O Brasil precisa tirar a maior vantagem possível
da atratividade de seu mercado na barganha. Para excluir a China da disputa, o
governo americano precisaria apresentar compensação bem superior.
O
alinhamento do Itamaraty com Trump pouco nos rendeu até agora. Não aliviou
restrições ao aço, etanol e produtos brasileiros. Os Estados Unidos têm perdido
participação na nossa balança comercial, enquanto a China se consolidou como
maior parceiro e comprador de produtos agrícolas. É também a economia que
melhor tem reagido à crise da pandemia.
Nas redes bolsonaristas, o ódio irracional à China se estende do 5G às vacinas. Por óbvio, o Brasil deve condenar a ditadura comunista, a crueldade imposta aos uigures de Xinjiang, a censura e a perseguição religiosa. Mas isso nada tem a ver com centrais telefônicas ou softwares que põem o 5G para funcionar. Se empresas brasileiras quiserem comprar a tecnologia chinesa, não há motivo razoável para impedir.
Um
pacote fechado com pressão – Opinião | O Estado de S. Paulo
É
bem-vindo o pacote comercial recém-fechado com os EUA, mas é cedo para se
apostar num acordo de livre comércio.
É bem-vindo o pacote comercial recém-fechado com os Estados Unidos, mas é muito cedo para apostar num acordo de livre comércio. Este é um assunto muito mais complicado, tecnicamente, e muito mais difícil do ponto de vista político. Com ou sem Donald Trump na Casa Branca, será preciso conseguir apoio de republicanos, democratas, empresários de vários setores e grupos ambientalistas e defensores dos direitos humanos. Se o democrata Joe Biden estiver na presidência, obstáculos poderão surgir mais prontamente. Ele já deixou clara a intenção de subordinar a cooperação com o Brasil, na área econômica, à preservação das florestas pelo governo brasileiro.
O
pacote sobre facilitação de comércio, melhoria regulatória e combate à corrupção
pode ser muito útil aos dois países. Qualquer medida para tornar mais simples e
ágeis os procedimentos comerciais – por exemplo, com a redução da burocracia –
pode resultar em ganhos importantes. Reformas profundas podem cortar até 14,5%
dos custos de uma operação comercial, no Brasil, segundo cálculo da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mencionado em nota dos
Ministérios da Economia e de Relações Exteriores.
Há
muito espaço para avançar além das alterações implantadas nos últimos anos. Na
área regulatória, o acordo está em linha, segundo a nota, com esforços para
tornar o ambiente de negócios mais transparente, mais aberto à concorrência e
menos sujeito à intervenção estatal. Mas, apesar dessas e de outras
qualificações apresentadas pelo Executivo, o compromisso Brasil-Estados Unidos
é uma extensão do acordo de facilitação de comércio aprovado em dezembro de
2013, em Bali, em conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio
(OMC).
Seria
estranho se as atuais administrações americana e brasileira, conhecidas por sua
aversão ao multilateralismo, destacassem a importância e a precedência da OMC,
um dos pilares da ordem multilateral, ao anunciar seu acordo de facilitação de
comércio, mudança regulatória e combate à corrupção. Mas esse é o ponto menos
importante, neste momento. Se os dois lados cumprirem os novos compromissos,
Brasil e Estados Unidos ganharão, embora ainda haja um longo e difícil caminho,
é preciso lembrar, até um acordo de livre comércio.
Planos
mais ambiciosos, de toda forma, dependerão de quem esteja, a partir de 2021, na
chefia do Executivo americano. O nome será conhecido em breve, depois da
eleição presidencial prevista para novembro. Se Trump for reeleito, será
prudente lembrar seus padrões de política comercial.
O
Brasil já foi atingido por medidas protecionistas absolutamente
injustificáveis. O presidente Jair Bolsonaro aceitou sem protesto os desaforos
comerciais, confirmando sua subordinação ao líder Trump. Mas pelo menos os
negociadores, se mantiverem alguma fidelidade aos melhores padrões do
Itamaraty, hoje renegados, deverão estar prontos para uma interlocução difícil.
O
acordo de facilitação de comércio foi o capítulo positivo das últimas
conversações. Mas a delegação enviada a Brasília tinha uma agenda mais ampla.
Para cumpri-la, seria preciso convencer as autoridades brasileiras a excluir os
chineses do leilão para fornecimento da tecnologia 5G.
O
trabalho foi liderado pelo conselheiro de Segurança Nacional Robert O’Brien.
Sua conversa incluiu uma ladainha conhecida: se o trabalho for entregue à
empresa Huawei, dados do governo e de empresas brasileiras poderão ser
capturados pelos chineses.
Como
parte do esforço de convencimento, a diretora da Corporação Financeira para o
Desenvolvimento Internacional, Sabrina Teichman, acenou com financiamentos a
operadoras brasileiras para comprar equipamentos de fornecedores ocidentais. A
embaixada chinesa reagiu e devolveu ao governo dos Estados Unidos a acusação de
espionagem.
Mais
uma vez o Brasil ficou no meio da disputa entre Washington e Pequim. Falta
conferir se Brasília decidirá a questão do 5G, afinal, levando em conta
afinidades ideológicas ou os interesses concretos do Brasil.
Desleixo com as agências reguladoras – Opinião | O Estado de S. Paulo
Rapidez
na aprovação de novos diretores denota que Senado cumpriu só formalidade.
Não foram necessárias mais do que oito horas para que os membros da Comissão de Infraestrutura do Senado aprovassem 16 nomeações do presidente Jair Bolsonaro para cargos de diretoria de agências reguladoras. Isso significa que, em média, um novo diretor foi sabatinado e aprovado pelo colegiado em apenas meia hora. O açodamento beira o desleixo e denota que o Senado tomou uma de suas prerrogativas constitucionais (art. 52, inciso III, alínea f) como mera formalidade, abrindo mão de um escrutínio mais detido das qualificações dos indicados.
O
processo de aprovação dos diretores das agências reguladoras pelo Senado não
está inscrito na Constituição e na Lei n.º 13.848/2019 à toa. Ele é a garantia
– ou deveria ser – de que cargos tão relevantes, em que pese a natureza
política das indicações, só serão preenchidos por aqueles que os senadores
entenderem ter os atributos necessários para bem desempenhar sua função
principal, qual seja, atuar em um ponto equidistante em relação aos interesses
dos usuários e das empresas prestadoras de serviços. Daí advém a força das
agências reguladoras, tal como foram concebidas, somada à independência desses
órgãos em relação ao governo de turno. Afinal, são órgãos de Estado.
Uma
vez aprovados pela comissão, os nomes dos indicados por Bolsonaro para cargos
na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel), Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(ANP) e Agência Nacional de Transportes Aquáticos (Antaq) deverão ser
referendados pelo plenário do Senado.
Além
dos 16 indicados para as agências citadas, também foram aprovados pela Comissão
de Infraestrutura do Senado os cinco diretores da nova Agência Nacional de
Proteção de Dados (ANPD), órgão que será responsável por editar e fiscalizar o
cumprimento das normas previstas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Três
dos indicados pelo presidente Jair Bolsonaro para a diretoria da ANPD são
militares.
O
ritmo das comissões do Senado no dia 19 passado foi de “mutirão”. A Comissão de
Assuntos Sociais levou apenas três horas para aprovar quatro indicações para a
diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Comissão de
Meio Ambiente aprovou a toque de caixa uma indicação para a Agência Nacional de
Águas (Ana).
Não
está em questão aqui a competência de cada um dos 21 indicados pelo presidente
Bolsonaro para ocupar cargos de direção nas agências reguladoras, até porque a
rapidez com que seus nomes foram aprovados pelo Senado não permite essa
avaliação. Mas é exatamente essa dúvida que não poderia existir, pois dá margem
para qualquer tipo de inferência. As agências reguladoras estão sendo usadas
para acomodar apaniguados? Com que interesse? Os novos diretores vão atuar
pautados pelo equilíbrio que deve haver entre interesses dos cidadãos e das
empresas que prestam os serviços que as agências são responsáveis por regular?
Não se sabe.
Essa
nuvem de suspeição só aprofunda o processo de desvirtuamento das agências
reguladoras tais como foram concebidas na década de 1990. O atual governo está
mantendo o que parece já ter se tornado uma infeliz tradição. Basta lembrar que
durante os governos do PT se deu uma total desmoralização desses órgãos, tidos
por Lula da Silva e Dilma Rousseff como usurpadores de competências do Poder
Executivo. Ou seja, a velha confusão entre órgãos de Estado e de governo.
O
Senado não ajuda a fortalecer as agências reguladoras ao abrir mão de uma
rigorosa sabatina dos indicados para seus cargos diretivos. Além disso, os
nomes de muitos desses indicados adormeciam há meses nos escaninhos da Casa.
É
preciso ficar claro de uma vez por todas que as agências reguladoras não são
cabides de emprego e não devem estar submetidas aos interesses de governantes
de turno. Elas servem ao interesse público. O presidente Bolsonaro já disse que
tinha intenção de exercer “algum poder de influência nessas agências”. Cabia ao
Senado impedir que isso acontecesse.
O papel do poder público no saneamento – Opinião | O Estado de S. Paulo
É
no atendimento às localidades mais carentes que este papel é mais
indispensável.
Por consenso geral, em que pesem os protestos de grupos de interesse corporativos e facções políticas retrógradas, o novo marco do saneamento é um extraordinário avanço num setor que, mais do que nenhum outro, expõe as desigualdades do Brasil. São quase 100 milhões de brasileiros (47% da população) sem acesso à coleta de esgoto e 35 milhões sem água tratada.
Entre
as muitas inovações do marco, destacam-se três. Primeiro, a centralização da
regulação na esfera federal, cabendo à Agência Nacional de Águas (ANA)
uniformizar as normas atualmente pulverizadas entre milhares de municípios. Em
segundo lugar, a exigência de licitação e da adesão a metas para fechar novos
contratos ou renovar os vigentes. Por fim, a possibilidade da montagem de
blocos regionais de municípios.
Tais
mudanças devem garantir, a um tempo, mais segurança jurídica e mais
competitividade, ajudando a atrair investimentos e promover a eficiência e a
universalização do saneamento. A terceira, em particular, tem o intuito de
proporcionar ganhos de escala e viabilizar o saneamento em pequenos municípios,
compensando suas carências técnicas, administrativas e financeiras. Seguindo um
modelo já aplicado, por exemplo, na concessão de rodovias, a ideia é combinar
num único bloco localidades rentáveis e deficitárias, de maneira que as
primeiras subsidiem, em alguma medida, a implementação e gestão da infraestrutura
nas segundas.
Do
ponto de vista social, é preciso especial atenção a este mecanismo. Um estudo
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alerta para a
situação fiscal delicada dos muitos municípios endividados e com limitações
para investir. Segundo Gesmar dos Santos, um dos responsáveis pela pesquisa,
historicamente “não há regularidade nos aportes municipais para as melhorias
traçadas no Plano Nacional de Saneamento Básico. Enquanto essas lacunas
orçamentárias não forem preenchidas, haverá entraves para o progresso no
setor”.
Um
dos problemas que precisarão ser enfrentados pela ANA e pelo Ministério de
Desenvolvimento Regional na regulação dos blocos regionais é a função das
tarifas. Elas servirão apenas para sustentar a operação ou serão previstas
também para financiar investimentos? Tarifas demasiado baixas podem
inviabilizar o negócio para as empresas prestadoras de serviços. Por outro
lado, tarifas demasiado altas podem impactar a renda e o bem-estar dos
cidadãos. O equilíbrio dependerá de uma sintonia fina entre a legislação
setorial e arranjos político-administrativos complexos.
Os
municípios com maior déficit, a zona rural e a população vulnerável exigem
particular apoio do poder público. Como destaca o Ipea, além de uma reforma
tributária consistente que aumente a capacidade de arrecadação e investimento
municipal, a União precisa priorizar investimentos nessas localidades.
Do
ponto de vista das empresas, é preciso considerar os mecanismos de ajuda
estatal vigentes, como, por exemplo, as garantias à tomada de financiamento; as
isenções de tributos (sobre o consumo de energia no saneamento, sobre a
aquisição de equipamentos e produtos e outros); ou a ajuda em projetos e
financiamentos impositivos ligados à abertura de capital. Do ponto de vista do
consumidor, um dispositivo importante para alcançar a população mais pobre é a
tarifa social, pela qual os pequenos consumidores pagam taxas reduzidas.
Contudo, esse mecanismo solidário ainda pode ser aprimorado e expandido. Um
levantamento do Ministério de Desenvolvimento Regional aponta que entre 34
concessionárias pesquisadas, apenas 13 praticam essa tarifa. Segundo o Ipea,
“há necessidade de definição de formato, responsabilidades, fiscalização e
análise dos efeitos dos subsídios – tanto para os cidadãos quanto para as
empresas, sejam elas públicas ou privadas”.
Se
a proposta do novo marco é, por meio de uma boa regulamentação pública,
promover a participação da iniciativa privada no setor, é no atendimento aos
municípios e comunidades mais carentes que se faz indispensável o maior
protagonismo do poder público.
A querela da vacina – Opinião | Folha de S. Paulo
Polarização
sobre obrigatoriedade é prematura e ameaça política de imunização
Antes
de poder contar com uma vacina para deter a Covid-19, o Brasil precisa
imunizar-se contra a politização da saúde pública. Na marcha atual de
insensatez liderada pelo presidente Jair Bolsonaro, quando uma das centenas de
vacinas em desenvolvimento se provar segura e eficaz poderá encontrar
resistências descabidas pela frente.
Bolsonaro
precipitou-se ao lançar de público uma discussão
sobre tornar ou não obrigatória uma vacina que nem mesmo existe. Não é
a primeira vez, e decerto não será a última, que atrapalha autoridades de saúde
na condução técnica da reação à pandemia, como em suas investidas contra o
distanciamento social e a favor da cloroquina.
O
debate fora de hora polarizou-se porque o Planalto ensaiou minar a confiança no
imunizante patrocinado pelo Executivo paulista.
O
próprio governador João Doria (PSDB) dá mostras de que pretende faturar
politicamente a vacina a ser fabricada pelo Instituto Butantan, em parceria com
a Sinovac, e se aventurou anunciando que deseja torná-la obrigatória.
Não
é coisa que se defina a esta altura dos ensaios clínicos. Alguns dos preparados
em teste já se mostraram seguros para uso humano, mas nenhum demonstrou ainda
eficácia nem o grau de imunização que poderá conferir, informação decisiva para
traçar o tipo de campanha necessária para obter o melhor benefício coletivo.
A
questão da obrigatoriedade se torna secundária, ademais, diante das evidências
de que o público brasileiro se inclina fortemente por aceitar a imunização.
Pesquisa nacional Datafolha feita em agosto constatou que 89% dos entrevistados
pretendiam vacinar-se contra o coronavírus.
Estudo
científico publicado nesta terça-feira (20) na revista Nature Medicine ouviu
13.426 pessoas em 19 países, em junho, sobre confiança na futura imunização. Na
média, 71,5% se disseram muito ou um tanto inclinados a tomar a vacina, e o
Brasil aparece muito bem no painel, com 85,4% de adesão, atrás somente da China
(88,6%).
Apesar
das sementes de dúvida plantadas pelo presidente, o Ministério da Saúde, após
omissão inicial, anunciou por fim que vai
incorporar a vacina Sinovac/Butantan no Programa Nacional de
Imunizações e fechou acordo para a compra
de 46 milhões de doses. Fez o que se deve fazer.
O
país apresentou até aqui níveis elevados de cobertura imunizante porque o
Sistema Único de Saúde realiza trabalho logístico e de comunicação reconhecido
internacionalmente como excelente.
Se
o governo federal desonrar essa tradição, caberá a estados e municípios levar
adiante as campanhas de conscientização, melhor recurso para inspirar
confiança.
Bolívia democrática – Opinião | Folha de S. Paulo
Eleição
pode restaurar normalidade abalada desde manobras de Evo Morales
Com
participação popular expressiva e sem registrar incidentes de monta, o pleito
realizado na Bolívia no domingo (18) constituiu o primeiro e fundamental passo
para que o país regresse à normalidade democrática, abalada desde as tentativas
do ex-presidente Evo Morales de se perpetuar no poder.
A
provável vitória
contundente do ex-ministro da economia de Morales, Luis Arce, do MAS,
dá a ele a legitimidade necessária para se dirigir a uma sociedade polarizada e
enfrentar os desafios da crise econômica gerada pela pandemia de Covid-19 —que
deve levar a uma queda de 7,9% do PIB neste ano, segundo projeção.
Para
o sucesso da eleição concorreu, sem dúvida, a atitude conciliatória dos
envolvidos no processo. Tanto a presidente interina, Jeanine Añez, como o
segundo colocado, Carlos Mesa, congratularam Arce pela vitória antes de finda a
apuração, afastando a possibilidade de contestação do resultado e abrindo
caminho para uma transferência de poder sem sobressaltos.
Arce,
por sua vez, apelou à unidade nacional em suas primeiras declarações, evitando
qualquer tipo de revanchismo. Afirmou que o MAS aprendeu com a experiência
passada e que o partido corrigirá seus erros na nova administração —numa
autocrítica que se distancia da retórica de Morales enquanto esteve à frente do
país.
No
governo de 2006 a 2019, o ex-presidente combinou a busca por maior inclusão de
grupos indígenas e uma política econômica pragmática, que logrou reduzir a
pobreza de 60% para 35% da população, com um apego ao cargo próprio do
caudilhismo latino-americano.
Suas
manobras para se manter no poder, desrespeitando as regras constitucionais e o
resultado de uma consulta popular, provocaram uma tensão social que atingiu o
ápice nas controvertidas eleições do ano passado, maculadas por suspeitas de
fraude.
Os
distúrbios então desencadeados levaram à destituição de Morales, após pressão
das Forças Armadas. À sua saída seguiu-se um problemático governo interino, que
perdurou por um ano sob acusações de revanchismo.
Espera-se
que esse passado deplorável possa começar a ser superado a partir de agora.
Para tanto, é também crucial que Morales, hoje exilado na Argentina e com
retorno à Bolívia esperado para logo, acomode-se no papel de ex-líder e se
abstenha de tentar intervir no governo de seu ex-comandado.
Mesmo na pandemia, mortes violentas voltam a aumentar – Opinião | Valor Econômico
Sem
uma política de segurança adequada, uma Justiça eficiente, e com um presidente
que gosta de fazer “arminhas”, a situação só tende a piorar
Não
bastasse a violência do novo coronavírus, com seu cortejo de 154 mil vítimas, o
número de assassinatos no Brasil voltou a crescer no primeiro semestre em
relação ao mesmo período de 2019. Foram 25.712 mortes, 7,1% mais, segundo o
Anuário Brasileiro da Segurança Pública, elaborado pelo Forum Nacional de
Segurança Pública. É um prenúncio muito ruim, porque nos dois últimos anos as
mortes violentas vinham em queda. As armas de fogo foram o instrumento de 3 em
cada 4 assassinatos.
A
parada súbita provocada pela pandemia permitiu a melhoria de alguns
indicadores, pelo isolamento social e restrição à mobilidade. Os crimes contra
o patrimônio de empresas e bancos se reduziram, assim como o roubo de carros. A
redução dos número de veículos nas estradas permitiu uma fiscalização mais
acurada, com o aumento das apreensões de maconha e cocaína. O número de
estupros caiu, embora de um nível muito elevado. Em 2019, ocorreu um a cada 8
minutos, com 66.123 vítimas - 30% delas crianças com até 10 anos, e 58% com até
13 anos. Com o confinamento forçado, o número de chamadas por violência
doméstica aumentou, assim como os casos de feminicídio.
O
presidente Jair Bolsonaro, um propagandista aberto do uso de armas, por vários
decretos, conseguiu abrir brechas em restrições que vinham conseguindo diminuir
a quantidade de mortes violentas. Sua ascensão foi acompanhada pela eleição de
governadores com ideias semelhantes, como Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, que
pregava “tiros na cabecinha” de bandidos e que deverá ser desalojado do Palácio
Laranjeiras acusado por falcatruas com dinheiro público.
A
liberação de armas veio acompanhada de um esforço do governo para impedir
rastreamento de munições e da tentativa de permitir que armas antes privativas
do Exército e polícia fossem liberadas. Uma avant-première dessa política pode
já ser a alta de assassinatos mesmo durante a pandemia.
A
facilidade de obter armas torna mais difícil e arriscada a vida dos policiais e
abre caminho a que mais armamentos parem nas mãos das milícias, que ocupam já
57,5% do território da capital fluminense, um quarto do território da cidade,
onde habitam mais de 2 milhões de cariocas (pesquisa do Grupo de Estudo dos
Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense). A suposição de que em
suas ações encontrarão cidadãos armados aumentou a violência de polícias já
propensas a atirar primeiro, como a do Rio de Janeiro e de São Paulo,
responsáveis por quase metade (42%) dos 3.181 mortos em intervenções policiais
no primeiro semestre do ano (alta de 6%).
O
número de mortes violentas, porém, diminui no Rio, subiu em São Paulo e seguiu
o rastro das disputas entre organizações criminosas pelo controle do tráfico de
drogas no Norte e Nordeste. Ele cresceu 96,6% no Ceará, palco recente de motins
policiais, 18,5% no Maranhão, 19,2% na Paraíba e 13,4% em Rondônia.
O
combate ao crime organizado subiu de padrão com as operações da Polícia Federal
para asfixiar o fluxo financeiro das atividades do tráfico. No fim de setembro,
a PF conseguiu interditar 70 empresas, em geral postos e distribuidora de
gasolina, e bloquear R$ 730 milhões do Primeiro Comando da Capital (PCC). O
caminho das ações de inteligência financeira prometem resultados cada vez mais
relevantes.
O
incentivo ao armamento da população, por outro lado, nada tem de inteligência e
a força bruta já se provou ineficaz. Os sinais do governo federal e de alguns
governadores provavelmente tiveram efeito no desestímulo à apreensão de armas,
e certamente estimularam sua aquisição. As armas registradas pularam de 225.276
em 2019 para 496.172 em agosto, um aumento de 120,3%. Aquelas em posse de
atiradores desportivos aumentaram de 171,9 mil para 356 mil - quantidade
suficiente para armar todos os 334 mil homens do efetivo das Forças Armadas. O
Distrito Federal elevou em 538,6% o arsenal privado - que agora atingiu uma
arma por 11 habitantes.
A força bruta não diminui a violência e abarrota cadeias. A população carcerária está dobrando a cada dez anos e soma hoje 755 mil pessoas. Presos provisórios, que aguardam sentença, são nada menos de 229.823, que não deveriam estar aonde estão. O déficit estimado de vagas é 312.295. Sem uma política de segurança adequada, uma Justiça eficiente, e, ademais, com um presidente que gosta de fazer “arminhas” com as mãos, a situação só tende a piorar.
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