É uma verdade relativa a que se pode deduzir da expressão “o cidadão vive no município, não no Estado ou na Federação”. A vida mudou profundamente nos últimos tempos, tornando-se cada vez mais complexa e cosmopolita. Se as fronteiras entre os países se enfraqueceram, o que não dizer dos limites meramente administrativos das cidades. A pandemia da Covid19, que já ceifou mais de 1 milhão de vidas, é mais uma evidência da mudança. Em meio a seus trágicos resultados ou precisamente por conta deles, teríamos pelo menos um saldo positivo desse sofrimento todo se pudéssemos assimilar uma nova forma de pensar a relação do cidadão com a polis e, em função dela, construir uma maneira contemporânea de pensar a política no nosso tempo.
A
pandemia fez com que todos tivessem que pensar profundamente a respeito de suas
convicções filosóficas mais profundas
A
começar pelo reconhecimento de que sobreviver à pandemia só foi possível com a
adoção de parâmetros de orientação científica que transcenderam qualquer
dimensão municipal. O isolamento social, primeiro, e o distanciamento social,
em seguida (uso de mascaras, periódica e meticulosa higiene das mãos, etc.),
foram as principais orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para
tentar estancar o alastramento do vírus. Mesmo que ambos tenham sido cumpridos
de maneira bastante parcial no Brasil, nossas condutas, sociais e pessoais,
assemelharam-se a de inúmeros países do globo.
A
contestação a essas recomendações desnudou as perspectivas filosóficas dos
governantes, suas concepções de civilização, sua visão do presente e do futuro.
Em uma palavra, as recomendações dos especialistas foram filtradas, em toda
parte, pelo crivo da política. Não poderia ser diferente. Viver, ou morrer, no
contexto da pandemia estaria assim submetido a uma orientação global e se
consubstanciaria num plano político concreto em cada país, desde o nível
regional até os entes locais do território. Nesse pacote estariam iniciativas
referentes a montagem de hospitais, alocação e distribuição de medicamentos e
de recursos financeiros e humanos, etc..
O
mesmo raciocínio pode ser usado em relação à vacina contra o novo Coronavirus.
A produção da vacina deriva do avanço da ciência e da especialização dos
cientistas em nível global e, essencialmente, da troca de informação entre
eles, além do grau de evolução e especialização da economia médico-farmacêutica
de cada país. Da mesma maneira, o sucesso ou o fracasso no tratamento dos
pacientes contaminados pelo vírus.
Em
suma, a pandemia demonstrou, de forma cabal, que as cidades não são mundos
encapsulados, que vivem para si mesmas – como se algum dia houvessem sido. Nos
momentos mais agudos, elas se “fecharam” e restringiram o movimento dos seus
cidadãos, mas se mantiveram conectadas com o que de mais importante se fazia ao
redor do mundo no enfrentamento da pandemia.
Por
suas ações e inações, Jair Bolsonaro passou a ser visto, em termos mundiais,
como o pior dirigente no enfrentamento da pandemia
Contudo,
as orientações dos especialistas não responderam de imediato às expectativas de
contenção do vírus, e com o correr dos meses, foram alteradas, embora tenham
sido mantidas como as referências mais seguras para enfrentar a emergência
sanitária que se apresentava. Em uma palavra: elas eram insuficientes diante da
complexa realidade que se instalava. Sabia-se do alcance, dos benefícios e dos
limites do isolamento social confrontado com a realidade social e econômica. Se
é verdade que a fala dos especialistas não poderia ser tomada de maneira
absoluta, era rematada tolice vocalizar que a pandemia estava sendo politizada.
Em suma, não havia sentido em pensar que as decisões quanto à pandemia
estivessem fora da dimensão política.
Por
ser assim, o comportamento dos principais dirigentes políticos do mundo esteve
em causa no contexto pandêmico. O presidente Jair Bolsonaro notabilizou-se,
dentro e fora do país, porque politizou a pandemia da forma mais equivocada
possível. Desdenhou de suas consequências e principalmente dos mortos;
recusou-se a colaborar com governadores e prefeitos no combate à pandemia,
alegando falsamente uma suposta obstrução do STF; impediu a comunicação e a
transparência a respeito do avanço e do combate à pandemia; e, por fim, buscou,
a todo custo, “abater” politicamente seus supostos concorrentes às futuríssimas
eleições presidências de 2022. Assim se comportou com dirigentes
democraticamente eleitos e com ministros que ele próprio convocou como seus
auxiliares.
Governadores,
prefeitos e todos os cidadãos ficaram a mercê de orientações conflitantes e o
resultado foi a desorientação total da população, com as consequências sabidas:
mais de 154 mil mortos em pouco mais de seis meses. No essencial, em relação à
pandemia, Bolsonaro entregou uma política truculenta e beligerante, eivada de
incompreensão e de ausência de solidariedade, além da absoluta falta de empatia
para com aqueles que perderam pessoas queridas.
Se
há algum saldo positivo a esperar é que os brasileiros, nas próximas eleições e
nas vindouras, exerçam suas escolhas estabelecendo claramente a diferenciação
entre lideranças e dirigentes políticos que se comprometeram em superar a crise
e aqueles que se aproveitaram dela visando apenas seus interesses pessoais.
*Alberto Aggio, historiador, professor da
Unesp
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