Há
uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que
sobrevirá da crise atual da covid-19
Talvez
alguns leitores já estejam familiarizados com o termo sindemia. Ele vem sendo
utilizado crescentemente pela imprensa após a Organização Mundial
de Saúde, além do renomado periódico científico The Lancet, terem se referido
à covid-19 e
suas consequências como uma sindemia. Para quem não sabe o que significa,
sindemia foi o termo cunhado pelo médico-antropólogo Merrill Singer nos anos 90
com o propósito de formular novas abordagens para o tratamento de doenças e o
enfrentamento de problemas de saúde pública.
Sindemias
consistem em situações onde duas ou mais doenças interagem biologicamente de
modo adverso, onde essas doenças coexistem em níveis que caracterizam epidemias
nas populações afetadas, e em contextos nos quais fatores socioeconômicos
diversos contribuem para o agravamento do problema constatado. Portanto, as sindemias
não tratam as doenças isoladamente, tampouco fora do contexto socioeconômico em
que despontam, ao contrário do entendimento usual sobre epidemias e pandemias.
Há
várias razões para que especialistas em saúde e saúde pública, além de
cientistas sociais, estejam abraçando o termo sindemia para caracterizar os
efeitos da covid-19. A mais visível delas é como a nova doença afeta
desproporcionalmente segmentos da população desavantajados seja por motivos
raciais, seja por questões relativas à desigualdade e à pobreza. Muitas vezes,
tanto raça quanto desigualdade e pobreza interagem, revelando os problemas
estruturais subjacentes. Está amplamente documentado que aqui nos EUA negros
e hispânicos são os que mais sofrem com a covid-19. No Brasil, são os mais pobres, de maioria
negra, os mais afetados. Essa divergência observada no impacto do vírus sobre a
sociedade tem características sindêmicas.
Se
pensarmos dessa forma sobre a covid-19, há muito com o que se preocupar mesmo
que exista uma vacina ou tratamentos para a doença seja quando for. Tomemos a
obesidade. A obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros
graves ou severos de covid-19. A obesidade é também um fator de risco para
doenças crônicas não transmissíveis, como a diabetes, a hipertensão, doenças
coronarianas, e por aí vai.
De
acordo com vários estudos recentes sobre a obesidade no Brasil, ela está não
apenas em trajetória crescente, como cada vez mais aflige a população de baixa
renda e, em particular, as mulheres mais pobres.
A
inter-relação entre obesidade, diabetes, e covid-19 configura uma sindemia nos
moldes descritos acima: as três doenças se exacerbam mutuamente em termos
biológicos e estão inseridas no contexto específico de pessoas de renda mais
baixa com reduzida segurança alimentar. Do mesmo modo, a inter-relação entre
obesidade, hipertensão, e covid-19 também configura uma sindemia, lembrando que
a hipertensão eleva outros riscos, como o de AVCs, de doenças renais crônicas,
e de vários outros problemas.
O
resumo disso tudo é que mesmo depois de passadas as ondas agudas da epidemia no
Brasil, haverá um contingente grande de pessoas com doenças crônicas, muitas
delas exacerbadas pela covid-19. Essas pessoas provavelmente pertencerão ao
mesmo segmento socioeconômico que hoje se associa tanto à covid-19, quanto à
existência de doenças como a obesidade. Todas essas pessoas, de variadas faixas
etárias, permanecerão dependentes do SUS.
Quando
o assunto é risco econômico no Brasil, fala-se muito em problemas de natureza
fiscal, risco de calote de dívida, descontrole inflacionário, e outros
problemas macroeconômicos que evidentemente devem ser pensados e considerados.
Contudo,
o risco mais importante, na verdade já uma realidade mesmo quando não levamos
em conta a covid-19, é o impacto das sindemias existentes sobre a saúde pública
e a economia, agravando problemas estruturais subjacentes, sobrecarregando o
SUS, e, claramente onerando também as contas públicas. Há uma urgente
necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise
atual. Dizer que o governo atual não está preparado para dar cabo desses
imensos desafios é eufemismo.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute For International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University
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