quarta-feira, 19 de março de 2025

Quem aceitará um ‘Acordo de Mar-a-Lago’? - Martin Wolf*

Valor Econômico

O que está sendo proposto é a recriação de um sistema global de gestão das taxas de câmbio

A política comercial caótica de Donald Trump só pode levar ao caos econômico. Então, será que o governo Trump pode se deparar com algo mais coerente e menos prejudicial, e ainda assim atender aos objetivos protecionistas do presidente? Talvez. Alguns membros, incluindo Scott Bessent, secretário do Tesouro, e Stephen Miran, presidente do Conselho de Assessores Econômicos, acreditam que sim.

Se alguém quiser entender essa abordagem mais sofisticada, deve ler “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading”, publicado em novembro de 2024. O autor afirma que “este ensaio não é uma defesa de políticas”. Mas, se parece um pato, é um pato. Vindo de um homem em sua posição atual, isso dever ser interpretado como uma defesa de políticas.

Apoiando o argumento de Miran está uma proposta feita pelo economista belga Robert Triffin no começo dos anos 1960. Triffin disse que a demanda crescente por dólares enquanto ativo de reserva só poderia ser suprida por déficits em conta corrente persistentes dos EUA. Isso, por sua vez, significava que o dólar estava persistentemente valorizado em relação às necessidades de equilíbrio na balança de pagamentos.

Com o tempo, ele argumentou, esse desempenho comercial fraco minaria a confiança no preço fixo do dólar em relação ao ouro. E assim, de fato, ocorreu. Em agosto de 1971, em resposta a uma corrida ao dólar, o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do ouro. Após duras negociações, um acordo foi firmado sobre novos conjuntos de paridades do dólar em relação a outras grandes moedas. Mas isso não durou. Logo, essas novas paridades colapsaram. O velho sistema de Bretton Woods de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis, foi substituído pelas taxas de câmbio flutuantes de hoje.

Miran aplica essa perspectiva ao atual dilema dos EUA. Por isso, é preciso ver o que aconteceu nas décadas de 1960 e 1970 como um paralelo mais apropriado para o que está sendo discutido hoje, do que os acordos do Plaza e do Louvre da década de 1980. O último visava gerenciar um regime de taxas de câmbio flutuantes em um momento de desequilíbrio entre o dólar e outras moedas, especialmente o iene japonês e o marco alemão. O que está sendo proposto agora é a recriação de um sistema global de gestão das taxas de câmbio.

A justificativa para isso, segundo Miran, é que, assim como na década de 1960, o desejo da maioria dos outros países de manter o dólar como moeda de reserva está elevando seu valor, abrindo assim em enorme déficit em conta corrente. Isso pressiona a produção de bens comercializáveis, especialmente os manufaturados.

Isso cria um dilema para os EUA entre as possibilidades de financiamento mais barato e alavancagem internacional, de um lado, e os custos sociais e de segurança fundamental de um setor manufatureiro mais fraco, do outro. No entanto, Trump quer proteger a indústria nacional e manter o papel global do dólar. Assim, a política precisa atingir os dois objetivos.

Uma possibilidade pode ser uma ação unilateral dos EUA para enfraquecer o dólar. Uma opção aqui seria um aperto fiscal combinado com uma flexibilização monetária. Mas isso atrapalharia o desejo de Trump de estender os cortes de impostos concedidos por ele em 2017. Outra possibilidade seria forçar o Federal Reserve (Fed) a desvalorizar o dólar. Mas isso poderia ter efeitos devastadores sobre a inflação e o dólar, como aconteceu na década de 1970.

Uma outra possibilidade seriam as tarifas sozinhas. Mas, se outras condições forem mantidas, isso levaria a uma valorização do dólar, o que prejudicaria o setor exportador americano. Desse modo, diz Miran, as tarifas também deveriam ser usadas como arma nas negociações para um acordo global ou, se for considerado necessário, serem complementadas por tal acordo.

O desejo da maioria dos outros países de manter o dólar como moeda de reserva está elevando seu valor, abrindo assim em enorme déficit em conta corrente. Isso pressiona a produção de bens comercializáveis, especialmente os manufaturados e cria um dilema para os EUA

Assim, o objetivo de um setor industrial mais forte, a ser entregue por uma combinação de tarifas e um dólar mais fraco, precisa da cooperação global. Minha colega Gillian Tett descreveu os possíveis detalhes do que seria um “Acordo de Mar-a-Lago”.

Ele tem dois aspectos principais. O aspecto econômico é liberar as restrições econômicas discutidas acima. A maneira de fazer isso, sugere Miran, é transformar o endividamento de curto prazo em empréstimos de prazos ultralongos, “convencendo” os detentores estrangeiros de títulos do Tesouro dos EUA a trocar suas posições por títulos perpétuos em dólar. Isso daria aos EUA mais margem para buscar sua combinação desejada de políticas fiscal e monetária frouxas. O aspecto político é apontar que aceitar tal acordo seria o preço para ser visto como amigo. Caso contrário, um país seria visto como inimigo, ou no máximo, flutuando entre as duas posições. Em um sentido preciso, isso poderia ser visto como um “esquema de proteção”.

Esta proposta levanta quatro questões. A primeira é se a análise de Miran sobre as relações entre o papel do dólar como moeda de reserva, o déficit crônico em conta corrente dos EUA e a fraqueza do emprego e da produção industrial está correta. Deve-se duvidar dela, porque os EUA estão longe de ser o único país de alta renda com queda na participação do emprego na manufatura.

A segunda questão é se o novo acordo monetário proposto de fato permitiria aos EUA combinar a emissão de uma moeda de reserva com seus objetivos setoriais de forma mais eficaz do que qualquer outra alternativa plausível.

A terceira, é se há alguma probabilidade de acordo com Trump sobre o conjunto complexo de objetivos e instrumentos dessa proposta.

A última questão é se Trump é capaz de manter qualquer acordo firmado por ele. Afinal de contas, ele abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o compromisso com a Otan e atacou o Canadá.

Os últimos dois pontos são, evidentemente, os mais importantes. Seu governo é capaz de fazer um acordo em que qualquer pessoa ou país sensato possa confiar? Acho que não. No entanto, a análise dos aspectos econômicos também é importante. Pretendo abordar isso na próxima semana. (Tradução de Mário Zamarian)

*Martin Wolf é o principal comentarista econômico do Financial Times.

 

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