Folha de S. Paulo
Todos têm uma elite para condenar, um povo
para defender e um sistema para combater
A professora Maria
Hermínia Tavares iniciou sua ótima coluna
da semana passada indagando sobre o que explicaria o avanço do
populismo de extrema direita. Espero que ela continue a nos iluminar na
exploração do tema, um dos mais decisivos. Mas, como o foco adotado era
compreender por que eleitores aderem ao discurso dos populistas radicais de
direita, gostaria de acrescentar algo ao tema, examinando outra questão: a
natureza desse populismo.
Nem precisaria ressaltar o quanto esse tema é
complexo. Digamos apenas que a concepção mais comum de populismo é negativa,
associada à demagogia, ao personalismo e ao desprezo pelas instituições. Eis a
razão pela qual ninguém se assume como populista nem aceita essa designação.
Acho, contudo, que é possível encontrar uma definição mais neutra e analítica de populismo, assim como diferenciar as formas que ele assume hoje. O populismo envolve retórica, atitude e crenças. Sua premissa fundamental é que a sociedade se divide entre um povo autêntico e uma elite corrupta. O indivíduo, partido ou governo populista parte dessa premissa para se dirigir à massa popular, representando-a como a parte mais nobre e fundamental da nação e se apresentando como a única forma política que se vincula orgânica e moralmente ao povo, tendo como missão enfrentar as elites em seu nome.
A variação entre os populismos está na
resposta à pergunta sobre quem é "o povo" para cada corrente. Há duas
respostas clássicas. No populismo de esquerda, o povo é a classe explorada no
capitalismo. A definição de Gramsci segue essa linha: o povo é formado pelos
subalternos em uma sociedade de classes. A liderança populista se apresenta
como defensora dos trabalhadores, dos marginalizados, dos subalternizados, e
sua ação política se traduz em políticas de redistribuição de renda e em luta
contra a desigualdade.
A segunda forma clássica é o populismo
nacionalista e conservador, de direita. Aqui, o povo é definido por identidade
cultural e nacional. O critério não é econômico, mas cultural e territorial: a
nação como comunidade de valores e história. A liderança populista se apresenta
como defensora dos valores nacionais contra elites progressistas e contra
estrangeiros. O inimigo do povo, aqui, não é necessariamente a elite econômica,
mas a elite política e cultural, traidora da nação.
Mas há um terceiro tipo, exemplificado
por Trump e Milei, que
escapa tanto ao modelo de esquerda quanto ao nacionalista. O que une Milei e
Trump, entre outros, é que eles rejeitam a ideia de povo da esquerda, flertam
com o conceito conservador, mas adotam uma terceira abordagem. O povo, aqui, é
formado por aqueles que competem no jogo do livre mercado, os que se esforçam,
inovam, criam riqueza e não dependem do Estado, e que, por isso mesmo, são
tosquiados, explorados, sufocados por políticas públicas de esquerda, obrigados
a pagar a conta pela inépcia estatal e, ainda por cima, tratados como os vilões
da história pelos progressistas. Esse populismo é individualista e
meritocrático e rejeita tanto a "casta" política quanto os
"vagabundos" que vivem de assistencialismo.
A ironia desse populismo ultraliberal é que,
embora se oponha ao populismo no discurso econômico, não hesita em adotar as
táticas populistas clássicas: discurso antielite, mobilização emocional,
rejeição do establishment, figura do líder outsider, personalismo e demagogia.
Os populismos de direita vencedores hoje,
portanto, variam conforme seus elementos centrais. Le Pen,
por exemplo, representa o populismo nacionalista, enquanto a AfD combina
elementos dos populismos nacionalista e ultraliberal. Milei e Trump
compartilham a retórica populista ultraliberal, voltada contra a casta e a
elite cultural progressista, mas o segundo mantém um teor mais alto de
populismo nacionalista, apelando à América profunda. Bolsonaro partiu de um
populismo conservador básico, ao qual acrescentou, como um apêndice retórico, o
populismo ultraliberal, porém sem nunca abandonar a retórica do populismo
protetor dos pobres e miseráveis.
Em comum, todos os populistas têm uma elite
para condenar, um povo para defender e representar, um sistema para combater e
desmontar. Todos se apresentam como a voz autêntica do povo e a expressão mais
genuína de sua vontade e de suas esperanças. O peso e a importância de cada
elemento nesse caldeirão retórico e nas ações de cada líder, partido ou
movimento é que conferem o sabor próprio do populismo predominante em cada
lugar. São iguais, mas, ao mesmo tempo, diferentes. E vice-versa.
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