quarta-feira, 19 de março de 2025

Os novos cidadãos - Marcelo de Azevedo Granato

O Estado de S. Paulo

O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado

No início deste ano, Mark Zuckerberg, dono da Meta, anunciou que a empresa não submeterá mais ao sistema de checagem de fatos as postagens feitas no Instagram e no Facebook nos Estados Unidos. A decisão tem diferentes implicações e justifica todo o debate que provocou e ainda provocará.

É oportuna, porém, a observação feita a respeito do tema no editorial Zuckerberg lava as mãos: “A mediação do real nesse ambiente ( das redes sociais) é simplesmente impossível, por mais formidável que seja a estrutura de checagem de fatos” ( Estadão, 9/1, A3). A observação é oportuna porque recorda a dificuldade de distinguir verdade e mentira numa plataforma que é aberta a todos e que não supõe a participação de especialistas dedicados a fazer essa distinção (e, então, torná-la acessível a todos), como faz a imprensa profissional.

Por muito tempo, a imprensa atuou como curadora das informações e dos discursos que povoavam a esfera pública, medindo, avaliando e selecionando seu fluxo. Seu dever de buscar a verdade factual era, ou deveria ser, uma barreira à manipulação dos fatos pela política; a aplicação do seu cânone da imparcialidade podia mediar as paixões populares.

Mas quantos ainda toleram a imparcialidade (mais ainda, uma imparcialidade pronunciada “de cima para baixo”)? Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

Talvez uma das razões disso seja o modo como geralmente se dá essa comunicação, não raro narcísica, tendenciosa, provocativa, divisiva, além de rápida, segmentada, imagética, emocional. Comunicação que nunca foi tão livre, nem tão manipulada; que ocorre normalmente à distância dos outros, às vezes até de si mesmo: “O mundo da internet trouxe a experiência da desencarnação, da perda do invólucro concreto em carne e ossos, num balanço entre um si mesmo imaginário e seu duplo” ( Ponto de Fuga, Jorge Coli).

Essa comunicação, amparada e favorecida pelas tecnologias digitais, molda “como” e “o que” conhecemos. Moldaria , assim, nossa cultura atual; logo, nossa cultura política atual.

Nela, vínculos políticos frequentemente resultam de interações afetivas; o bom político é “espontâneo”, “autêntico”, especialmente quando o que ele diz que sente nós sentimos também (o que ele efetivamente faz torna-se secundário, então). A comunidade política, nesses termos, não deve mirar a civilidade (que estabelece uma distância entre nós), mas a personalidade (que nos aproxima do nosso líder ou grupo). Daí as adesões de corpo e alma a conhecidos personagens políticos da atualidade.

Nesse contexto, sobressai o papel do entretenimento. Ele sempre teve um lugar na política, bem antes dos influencers, dos vídeos do TikTok, dos memes, etc. Como afirma o professor Eugênio Bucci no artigo Sem jornalismo, mundo não tem democracia e, ironicamente, não tem liberalismo ( Estadão, 4/1), “a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos”. Atualmente, no entanto, “não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política”.

O entretenimento, assim, mobiliza interpretações da realidade, induz e reforça convicções, celebra comportamentos com destreza inédita. E, com as tecnologias digitais, ganhou um impulso vigoroso. Como diz Bucci, relatos informativos confiáveis perderam espaço para atrações mais excitantes: “A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional”. Assim, hoje, é o entretenimento que “modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show”. O entretenimento tem a capacidade de suspender a dúvida em nome da diversão ou da confirmação do próprio ponto de vista.

E é assim que muitas sociedades pelo mundo vêm se “repolitizando”, num processo em que a autoexpressão, a representação prevalece sobre a comunicação, em que há mais divisões e menos comunidade, mais certezas do que interrogações, muitas identidades e pouca fraternidade.

É verdade que “democracia é feita de cacofonia”, como dito no editorial citado anteriormente, e que a pluralidade de vozes presentes no debate público geralmente atua em favor de um regime democrático, notadamente numa democracia liberal (democracia, sem esse adjetivo, por si só, não garante o respeito a direitos).

Por outro lado, que cidadão emerge deste ambiente digital espetacularizado de hoje? Uma cultura de participação política está bem encaminhada sob a liderança das lives, dos vídeos curtos, dos memes, da lacração, do cancelamento, do grotesco? Que comunidades políticas, de discussão e ação popular, se formam num tal ambiente? Nele, quais são as chances de tomarmos parte “nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação” das políticas sociais, como estabelece o parágrafo único do artigo 193 da Constituição federal de 1988? O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado.

*Doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp

 

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