O Estado de S. Paulo
O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado
No início deste ano, Mark Zuckerberg, dono da
Meta, anunciou que a empresa não submeterá mais ao sistema de checagem de fatos
as postagens feitas no Instagram e no Facebook nos Estados Unidos. A decisão
tem diferentes implicações e justifica todo o debate que provocou e ainda
provocará.
É oportuna, porém, a observação feita a respeito do tema no editorial Zuckerberg lava as mãos: “A mediação do real nesse ambiente ( das redes sociais) é simplesmente impossível, por mais formidável que seja a estrutura de checagem de fatos” ( Estadão, 9/1, A3). A observação é oportuna porque recorda a dificuldade de distinguir verdade e mentira numa plataforma que é aberta a todos e que não supõe a participação de especialistas dedicados a fazer essa distinção (e, então, torná-la acessível a todos), como faz a imprensa profissional.
Por muito tempo, a imprensa atuou como
curadora das informações e dos discursos que povoavam a esfera pública,
medindo, avaliando e selecionando seu fluxo. Seu dever de buscar a verdade
factual era, ou deveria ser, uma barreira à manipulação dos fatos pela
política; a aplicação do seu cânone da imparcialidade podia mediar as paixões
populares.
Mas quantos ainda toleram a imparcialidade
(mais ainda, uma imparcialidade pronunciada “de cima para baixo”)? Nem a
tolerância é uma marca da comunicação digital atual.
Talvez uma das razões disso seja o modo como
geralmente se dá essa comunicação, não raro narcísica, tendenciosa,
provocativa, divisiva, além de rápida, segmentada, imagética, emocional.
Comunicação que nunca foi tão livre, nem tão manipulada; que ocorre normalmente
à distância dos outros, às vezes até de si mesmo: “O mundo da internet trouxe a
experiência da desencarnação, da perda do invólucro concreto em carne e ossos,
num balanço entre um si mesmo imaginário e seu duplo” ( Ponto de Fuga, Jorge
Coli).
Essa comunicação, amparada e favorecida pelas
tecnologias digitais, molda “como” e “o que” conhecemos. Moldaria , assim,
nossa cultura atual; logo, nossa cultura política atual.
Nela, vínculos políticos frequentemente
resultam de interações afetivas; o bom político é “espontâneo”, “autêntico”,
especialmente quando o que ele diz que sente nós sentimos também (o que ele
efetivamente faz torna-se secundário, então). A comunidade política, nesses
termos, não deve mirar a civilidade (que estabelece uma distância entre nós),
mas a personalidade (que nos aproxima do nosso líder ou grupo). Daí as adesões
de corpo e alma a conhecidos personagens políticos da atualidade.
Nesse contexto, sobressai o papel do
entretenimento. Ele sempre teve um lugar na política, bem antes dos
influencers, dos vídeos do TikTok, dos memes, etc. Como afirma o professor
Eugênio Bucci no artigo Sem jornalismo, mundo não tem democracia e, ironicamente,
não tem liberalismo ( Estadão, 4/1), “a disputa do poder sempre jogou com a
dissimulação e com recursos cênicos”. Atualmente, no entanto, “não é mais a
política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se
apossa da política”.
O entretenimento, assim, mobiliza
interpretações da realidade, induz e reforça convicções, celebra comportamentos
com destreza inédita. E, com as tecnologias digitais, ganhou um impulso
vigoroso. Como diz Bucci, relatos informativos confiáveis perderam espaço para
atrações mais excitantes: “A internet e suas técnicas permitiram que o
aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o
argumento racional”. Assim, hoje, é o entretenimento que “modula as narrativas,
rege o debate público, que funciona como um reality show”. O entretenimento tem
a capacidade de suspender a dúvida em nome da diversão ou da confirmação do
próprio ponto de vista.
E é assim que muitas sociedades pelo mundo
vêm se “repolitizando”, num processo em que a autoexpressão, a representação
prevalece sobre a comunicação, em que há mais divisões e menos comunidade, mais
certezas do que interrogações, muitas identidades e pouca fraternidade.
É verdade que “democracia é feita de
cacofonia”, como dito no editorial citado anteriormente, e que a pluralidade de
vozes presentes no debate público geralmente atua em favor de um regime
democrático, notadamente numa democracia liberal (democracia, sem esse
adjetivo, por si só, não garante o respeito a direitos).
Por outro lado, que cidadão emerge deste
ambiente digital espetacularizado de hoje? Uma cultura de participação política
está bem encaminhada sob a liderança das lives, dos vídeos curtos, dos memes,
da lacração, do cancelamento, do grotesco? Que comunidades políticas, de
discussão e ação popular, se formam num tal ambiente? Nele, quais são as
chances de tomarmos parte “nos processos de formulação, de monitoramento, de
controle e de avaliação” das políticas sociais, como estabelece o parágrafo
único do artigo 193 da Constituição federal de 1988? O cidadão forjado no ativo
e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado.
*Doutor em Direito pela USP e pela Università
degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi
e Facamp
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