O Estado de S. Paulo
O mais certo é apontar as dificuldades da política diante da velocidade das mudanças
Um lance de dados jamais abolirá o acaso, segundo o verso famoso, e tudo indica que o desfecho da eleição presidencial norte-americana seguirá o vaticínio nele implícito. Por força de dispositivo imaginado numa era anterior à plena afirmação da democracia de massas, de nada adiantará a soma total de votos de cada um dos candidatos, valendo antes a vitória nos colégios estaduais por margens provavelmente mais estreitas do que nunca. Nos tais Estados-pêndulo, alguns milhares de votos, que podem ser o fruto de circunstâncias fortuitas, acabarão por ter consequências que irão muito além dos Estados Unidos.
Fisicamente frágil e politicamente impopular,
Joe Biden reviveu nestes anos a sina de que não basta ser, é preciso também
parecer. Ele, bom presidente, não parece ser o que foi, ou tem sido, e sempre
se paga caro por isso. Simbolicamente, seus atos inaugurais refletiram a
ambição de recriar o reformismo forte de Franklin Roosevelt. A sede do governo,
por sua vontade, logo de saída acolheu os bustos de gente como Luther King e
Rosa Parks, ícones da luta pelos direitos civis, e de César Chávez, lendário sindicalista
dos trabalhadores agrícolas. Nada mais significativo para alguém, como Biden,
disposto a iniciar uma mudança de época nas relações entre política e economia,
Estado e mercado, no rumo sugerido pelo governo Obama.
Muito alta, a ambição de Biden. Para
concretizá-la, o roteiro consiste em tentar restabelecer sobre novas bases a
grande coalizão democrata, em cuja dissolução se empenharam os republicanos a
partir de Richard Nixon e, especialmente, Ronald Reagan, para não falar do
recente populismo grosseiro de Donald Trump. Para tanto, uma ação de fôlego
implica agora e nos próximos anos reatar os laços entre “intelectuais” e
“simples”, cosmopolitas e nacionalistas, fechando uma das vias pelas quais
ocorre uma sangria dos votos de trabalhadores de baixa qualificação em
benefício dos republicanos da era Trump.
O ressentimento dos “perdedores” é o que tem
permitido a expansão da extrema direita americana para além do terreno original
constituído majoritariamente de cristãos brancos e conservadores. Uma fração
considerável de negros e latinos torna-se suscetível à pregação extremista, uma
vez perdida a identidade de classe garantida pelo trabalho e pelo sindicato.
Não por acidente, a maioria dos Estados em
que o equilíbrio de forças se mostra instável, dando espaço para vitórias por
margem exígua, compõe o núcleo do “cinturão da ferrugem”. Neles, o velho
industrialismo vegeta, desapareceu ou está em vias de desaparecimento. E os
investimentos próprios da bidenomics, incentivadores de novas tecnologias,
ainda não tiveram o tempo de mudar a paisagem desolada.
O tema da imigração tem sido o palco das
afirmações mais desatinadas por parte de Donald Trump – o que, diga-se de
passagem, também ocorre na Europa entre seus confrades da direita autoritária.
Num lugar e no outro fala-se da hipótese paranoica de substituição da população
por gente de etnia ou religião alheia à pretensa pureza dos locais. Numa nação
do novo mundo, em que o jus solis naturalmente se afirmou e sucessivas ondas
migratórias constituíram a massa da população, pode-se até apregoar – mentirosamente!
– que os imigrantes são os responsáveis por todos os males, inclusive o sumiço
de gatos, mas temos de convir que soa especialmente bizarro proclamar que
“envenenam o sangue” nativo.
A ultradireita europeia criou o feio
neologismo “remigração” para indicar o sonho desesperado de erguer uma
fortaleza protegida dos bárbaros. A norte-americana propõe a deportação de um
contingente imenso de pessoas sem documentos, não sem antes passar por
confinamentos e campos de concentração. Tomado ao pé da letra, esse projeto
daria inequívocos traços policialescos a toda a sociedade. Mesmo entre
conservadores fiéis ao império da lei, há quem fale de fascismo ou
fascistização, não hesitando em exumar a palavra terrível de um século atrás.
Debates conceituais à parte, convém levar Trump a sério e verificar todas as
possibilidades de involução civil – e crise civilizatória – implícitas na caça
e expulsão de milhões de pessoas.
Processos dramáticos como os citados, a
saber, a reestruturação produtiva e a imigração de massas, são marcas da
transformação que nos atinge em cheio. Há um elemento de verdade na constatação
da falta de líderes à altura. A própria fragilidade de um político experiente,
como Biden, pode servir como sinal dos tempos, em particular quando em
contraste com a audácia de tiranos e tiranetes até no coração do Ocidente
democrático. O mais certo, porém, é apontar as dificuldades da política, em
geral, diante da velocidade das mudanças, empobrecendo a esfera pública e
facilitando a manipulação massiva de indivíduos sem maiores referências
culturais, econômicas ou de qualquer outro tipo. As soluções, então, ficam mais
ou menos ao acaso, escapando à virtù humana e brotando caoticamente da fortuna
que não controlamos.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
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