Folha de S. Paulo
Atribuir responsabilidade
sobre a segurança na cidade ao STF é hipocrisia
Nesta semana, o Supremo
Tribunal Federal retomou o julgamento da ADPF 635, a chamada ADPF das Favelas,
pela qual se busca a elaboração de um plano para a redução da letalidade
policial no Rio de Janeiro. Para muitos, ao propor limites para o uso da força
letal em operações policiais, o Supremo estaria inibindo o combate ao crime
organizado. Mais do que isso, estaria invadindo competência que foi conferida
aos Estados.
Embora tenham forte
ressonância junto ao eleitor, ambos argumentos são equivocados.
Em primeiro lugar, o
surgimento, crescimento, enraizamento e domínio do crime organizado no Rio de
Janeiro, ou em outras regiões do Brasil, precede, em muito, qualquer
intervenção do Supremo.
Se o Rio está se tornando um
"resort do crime organizado", como sugere o prefeito, isso decorre
diretamente da conduta de muitas gerações de governantes que negligenciaram,
por completo, o direito dos cidadãos à segurança. Atribuir responsabilidade
ao Supremo é ato
de hipocrisia.
Também não procede o argumento de que a intervenção do Supremo seja indevida. Embora a competência primária pela política de segurança seja do Executivo, tanto no plano estadual como no federal, cumpre ao Judiciário, quando devidamente provocado, aferir a compatibilidade de uma determinada política pública com preceitos fundamentais da Constituição. E é exatamente isso o que está ocorrendo nessa ADPF.
Ao longo de décadas, o
Estado brasileiro têm sido negligente com sua obrigação constitucional de
assegurar o direito fundamental de todo cidadão à segurança. Ao Estado cumpre o
dever de criar leis, instituições e políticas públicas voltadas à proteção da
vida, do patrimônio e da integridade física e moral dos cidadãos. Quando o
Estado falha, o crime vence e o cidadão sofre. Quando falha sistematicamente, a
vida de milhões de pessoas, especialmente as mais pobres, vai sendo brutalizada
pelo crime.
Governantes irresponsáveis e
oportunistas buscam, muitas vezes, compensar a própria incompetência incitando
as polícias a fazer justiça com as próprias mãos. Não só fazem vistas grossas
para o arbítrio e a violência policial
como para a atuação de milícias. Essa postura pode até render votos, mas não
gera segurança.
Polícias violentas e
arbitrárias não combatem o crime. Ao contrário, fomentam um ciclo vicioso em
que ele cresce. Não há organização criminosa sem a conivência de agentes de
Estado que agem à margem da lei. É dessa relação promíscua que florescem os
verdadeiros resorts do crime.
A ADPF das Favelas não
resolverá o problema da criminalidade no Rio de Janeiro. Mas pode contribuir
para uma melhora, de duas maneiras.
Em primeiro lugar,
desestabilizando práticas ilegais que não apenas violam os direitos dos
cidadãos como degradam as polícias. Ao impor limites ao uso abusivo e
arbitrário da violência letal, ampliará a integridade e a confiança da
população na polícia, o que é indispensável para uma política de segurança
eficaz.
Em segundo lugar, abrindo
uma oportunidade para que as autoridades responsáveis possam, coordenadamente,
qualificar as políticas de segurança e modernizar as polícias.
É com formação,
inteligência, respeito ao trabalho policial e organização institucional, e sob
o império da lei, que se combate ao crime. O resto é bravata.
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