O Estado de S. Paulo
Com um pé nas costas, apresentamos como reais coisas que, examinadas com cuidado, são meras contrafações
De uma coisa nós, brasileiros, não podemos nos
queixar: o mundo nos admira; nos vê como um povo alegre e notavelmente
criativo.
E não é para menos. Vejam só. Não há outro país que, trabalhando só 161 dias por ano, como o professor José Pastore calculou a partir da proposta de regime 4x3, se mantenha na posição de oitava economia do mundo. Quando alguém nos lembra disso, nos enchemos de orgulho e deixamos de lado o fato de termos uma população de mais de 210 milhões, da qual pelo menos 30% é semianalfabeta.
Chama também a atenção a facilidade com que
manipulamos aparências. Com um pé nas costas, apresentamos como reais coisas
que, examinadas com cuidado, são meras contrafações. Veja-se o nosso recente
“voo de galinha”, vendido urbi et orbi como sinal de nossa ansiada retomada do
crescimento sustentável. O aumento do emprego com carteira assinada seria uma
clara evidência disso. O problema é que a realidade é exatamente o oposto. O
aumento do emprego significa que a economia está operando acima de seu potencial,
mandando a inflação para a estratosfera e forçandonos a praticar a taxa de
juros mais alta do planeta. Daí os entendidos dizerem que o Produto Interno
Bruto (PIB) de 2025 dificilmente chegará a 2%. Poderá ser menos, se Lula da
Silva e Jair Bolsonaro insistirem em repetir a asnática radicalização de 2018 e
2022. Na estapafúrdia hipótese de crescermos só isso durante várias décadas,
levaremos mais de 30 anos para dobrar nosso anêmico PIB anual per capita,
inferior ao do Mississippi, o Estado mais pobre da União Americana, mas, como
acima frisei, tal hipótese é estapafúrdia.
Volta e meia a imprensa nos informa que
alguns brasileiros se destacaram em algum concurso internacional de física ou
matemática. Infelizmente, é também verdade que 73% dos cidadãos com mais de 15
anos fica abaixo do piso numa avaliação internacional do conhecimento de
ciências. Esses dados de fato não nos trazem alívio, mas, para bem compreender
a evolução de nosso sistema de ensino, precisamos de um retrospecto de muitas
décadas. Voltemos à Revolução de 1930.
Com um pé nas costas, apresentamos como reais
coisas que, examinadas com cuidado, são meras contrafações
O texto de abertura do portal do Ministério
da Educação assevera que Getúlio Vargas, logo que se sentou em sua poltrona no
Catete, anunciou que em breve o Brasil implantaria um sistema exemplar de
ensino médio. Demorou um pouco, mas em 1942-1946 nosso ministro da Educação pôs
mãos à obra. Repare-se que, àquela altura, a ditadura getulista já fora
contestada pelo Manifesto dos Mineiros, e o Brasil, meio como quem costeia o
alambrado, já começara a se alinhar às democracias ocidentais na guerra contra
a Alemanha.
Mas Gustavo Capanema não fugiu do enredo. A
ideia, que qualquer fascista subscreveria de bom grado, era criar dois sistemas
educacionais, um para os ricos e outro para os pobres. O primeiro sistema,
destinado aos ricos, ensinaria as disciplinas “nobres”, aquelas que funcionavam
como um passaporte certo para o ensino superior. Tinha na base o ginásio e
depois o colégio. O segundo sistema, dito “profissionalizante”, serviria para
transmitir à baixa classe média a sensação de que seus filhos, arcando com anuidades
mais baixas, também teriam, no final, conquistado o almejado diploma. A joia
dessa coroa seriam as chamadas “escolas técnicas de comércio”, supostamente
incumbidas de preparar os jovens menos aquinhoados para o mercado. Para tanto,
poderiam funcionar à noite, para que os jovens trabalhassem oito horas por dia.
Escusado dizer que tais escolas eram ruins nas capitais e péssimas no interior.
A vantagem das primeiras era que, nas grandes cidades, em geral não faltava
energia elétrica; no interior, o mais comum era as classes se virarem à luz de
lampiões ou lamparinas. Resumindo, a reforma de Capanema superpunha uma
segregação educacional à segregação social, que dispensa comentários.
Cinquenta anos se passaram até o desmonte
daquele monstrengo dito “profissionalizante”. Primeiro, no governo Fernando
Henrique Cardoso, o ministro Paulo Renato Souza atacou o problema pelo lado
administrativo, agilizando a entrega do dinheiro público às escolas. Segundo,
em 2023, uma equipe qualificada alterou profundamente os currículos, admitindo,
ainda, cursos profissionalizantes, mas num papel decididamente secundário, que
de forma alguma mantinha no horizonte uma sociedade de castas.
Outra vantagem do retrospecto à década de
1930 é evidenciar que a presença do nazifascismo entre nossas elites foi mais
extensa e duradoura do que geralmente se supõe. Basta lembrar que, em 1934,
Luís Simões Lopes, fundador da Fundação Getulio Vargas, escreveu uma carta
quilométrica ao seu amigo, por coincidência o próprio Getúlio Vargas,
manifestando sua admiração pela organização política que começava a ser
constituída na Alemanha (sem mencionar que, àquela altura, dezenas de milhares
de pessoas já se encontravam confinadas a campos de concentração), e
recomendando enfaticamente a Getúlio que pensasse em aqui implantar algo
semelhante. Admirava todo o sistema de Adolf Hitler, mas o líder que mais
falava ao seu coração era o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que ele
via como fonte de uma nova cultura.
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