sábado, 8 de fevereiro de 2025

Projeto que enfraquece Ficha Limpa é um escárnio - Roberto Livianu

O Globo

Punição de dois anos equivaleria a condenar um homicida a doar cestas básicas ou um estuprador a prestar serviços à comunidade

Há muito poucas leis no Brasil originadas de projetos de iniciativa popular. Uma dessas raridades é a Lei da Ficha Limpa, que visa a tirar da urna eletrônica e afastar da vida política os maus políticos. Sua principal arma jurídica, registre-se, é a inelegibilidade por oito anos. Entendeu-se pela constitucionalidade e decidiu-se, no Supremo Tribunal Federal, que a pena deve ser aplicada após o trânsito em julgado da sentença (após ela se tornar definitiva, não cabendo mais recurso).

Já se tentou de tudo para tornar letra morta a Lei da Ficha Limpa. Em 2014, em Mato GrossoRoraima e no Distrito Federal, José Riva, Neudo Campos e José Roberto Arruda, todos fichas-sujas, apresentaram-se candidatos aos governos de suas respectivas unidades da Federação e obtiveram legenda de seus partidos ao arrepio da lei. Riva, com mais de cem processos por improbidade administrativa. Sabiam que, ao final, o Tribunal Superior Eleitoral barraria as candidaturas, mas queriam avançar eleitoralmente até onde fosse possível, para depois passar o bastão a substitutos, como se não houvesse lei. Em relação a Mato Grosso e Distrito Federal, a estratégia não deu certo; em Roraima, funcionou. Foram substituídos pelas mulheres, e Suely Campos foi eleita governadora do estado, enganando os eleitores e burlando o espírito da Lei da Ficha Limpa.

Mais de dez anos passados, dias após assistirmos à posse como primeiro suplente da Mesa Diretora do senador Chico Rodrigues — flagrado com mais de R$ 30 mil nas partes íntimas e jamais cassado ou punido por isso pelo Conselho de Ética —, a sensação é que a impunidade ainda é fantasma que assombra o país do “orçamento secreto”.

Há poucos meses, bolsonaristas e petistas se uniram para aprovar a maior anistia da História aos partidos políticos, zerando ações afirmativas previstas na Constituição. Em frente paralela ao projeto que pretende anistiar os atos do 8 de Janeiro, a oposição decidiu agora apostar em nova articulação para alterar a Lei da Ficha Limpa, reduzindo a inelegibilidade de oito para dois anos. De autoria do deputado Bibo Nunes (PL-RS), a inacreditável proposta preconiza que o prazo passaria a contar da eleição que ensejou a punição e abre caminho para o ex-presidente Jair Bolsonaro disputar a Presidência em 2026. Querem garantir o retorno rápido à política dos violadores da lei.

A iniciativa quer ganhar a simpatia de outros partidos, já que a inelegibilidade atinge políticos de todas as alas políticas. O projeto traz até o momento assinatura de muitas dezenas de deputados, a maioria do PL, mas também de MDBPatriotaPPPSD e Republicanos, partido do novo presidente da Câmara, Hugo Motta. Deve-se registrar que, com esse método, foi aprovada a reforma que enfraqueceu a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14230/21), quando petistas e bolsonaristas também se uniram a outros segmentos políticos.

No que diz respeito à mudança da Lei de Improbidade, diversos parlamentares que votaram no projeto respondiam a ações de improbidade e se posicionaram pela aprovação do texto de caráter despenalizante, legislando em causa própria sem qualquer constrangimento. Na ocasião, tamanho foi o absurdo da desfiguração do substitutivo, não debatido em sequer uma audiência pública, que Roberto de Lucena, autor do projeto, votou contra. Mas a urgência de votação foi aprovada em oito minutos.

O projeto de Bibo Nunes é um escárnio, que garantiria legalmente a impunidade, já que dois anos de inelegibilidade é o nada no tempo da política. Equivaleria a condenar um homicida a doar cestas básicas ou um estuprador a prestar serviços à comunidade. No caso de Bolsonaro, desafia-se claramente o Judiciário. Esse projeto representa afronta ao princípio constitucional da separação de Poderes.

*Roberto Livianu, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, é doutor em Direito Penal pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e integrante da Academia Paulista de Letras Jurídicas

 

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