O Globo
Punição de dois anos equivaleria a condenar
um homicida a doar cestas básicas ou um estuprador a prestar serviços à
comunidade
Há muito poucas leis no Brasil originadas de projetos de iniciativa popular. Uma dessas raridades é a Lei da Ficha Limpa, que visa a tirar da urna eletrônica e afastar da vida política os maus políticos. Sua principal arma jurídica, registre-se, é a inelegibilidade por oito anos. Entendeu-se pela constitucionalidade e decidiu-se, no Supremo Tribunal Federal, que a pena deve ser aplicada após o trânsito em julgado da sentença (após ela se tornar definitiva, não cabendo mais recurso).
Já se tentou de tudo para tornar letra morta
a Lei da Ficha Limpa. Em 2014, em Mato Grosso, Roraima e no
Distrito Federal, José Riva, Neudo Campos e José Roberto Arruda, todos
fichas-sujas, apresentaram-se candidatos aos governos de suas respectivas
unidades da Federação e obtiveram legenda de seus partidos ao arrepio da lei.
Riva, com mais de cem processos por improbidade administrativa. Sabiam que, ao
final, o Tribunal Superior Eleitoral barraria as candidaturas, mas queriam
avançar eleitoralmente até onde fosse possível, para depois passar o bastão a
substitutos, como se não houvesse lei. Em relação a Mato Grosso e Distrito
Federal, a estratégia não deu certo; em Roraima, funcionou. Foram substituídos
pelas mulheres, e Suely Campos foi eleita governadora do estado, enganando os
eleitores e burlando o espírito da Lei da Ficha Limpa.
Mais de dez anos passados, dias após
assistirmos à posse como primeiro suplente da Mesa Diretora do senador Chico
Rodrigues — flagrado com mais de R$ 30 mil nas partes íntimas e jamais
cassado ou punido por isso pelo Conselho de Ética —, a sensação é que a
impunidade ainda é fantasma que assombra o país do “orçamento secreto”.
Há poucos meses, bolsonaristas e petistas se
uniram para aprovar a maior anistia da História aos partidos políticos, zerando
ações afirmativas previstas na Constituição. Em frente paralela ao projeto que
pretende anistiar os atos do 8 de Janeiro, a oposição decidiu agora apostar em
nova articulação para alterar a Lei da Ficha Limpa, reduzindo a inelegibilidade
de oito para dois anos. De autoria do deputado Bibo Nunes (PL-RS), a
inacreditável proposta preconiza que o prazo passaria a contar da eleição que
ensejou a punição e abre caminho para o ex-presidente Jair
Bolsonaro disputar a Presidência em 2026. Querem garantir o retorno
rápido à política dos violadores da lei.
A iniciativa quer ganhar a simpatia de outros
partidos, já que a inelegibilidade atinge políticos de todas as alas políticas.
O projeto traz até o momento assinatura de muitas dezenas de deputados, a
maioria do PL, mas também de MDB, Patriota, PP, PSD e Republicanos,
partido do novo presidente da Câmara, Hugo Motta.
Deve-se registrar que, com esse método, foi aprovada a reforma que enfraqueceu
a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14230/21), quando petistas e
bolsonaristas também se uniram a outros segmentos políticos.
No que diz respeito à mudança da Lei de
Improbidade, diversos parlamentares que votaram no projeto respondiam a ações
de improbidade e se posicionaram pela aprovação do texto de caráter
despenalizante, legislando em causa própria sem qualquer constrangimento. Na
ocasião, tamanho foi o absurdo da desfiguração do substitutivo, não debatido em
sequer uma audiência pública, que Roberto
de Lucena, autor do projeto, votou contra. Mas a urgência de votação foi
aprovada em oito minutos.
O projeto de Bibo Nunes é um escárnio, que
garantiria legalmente a impunidade, já que dois anos de inelegibilidade é o
nada no tempo da política. Equivaleria a condenar um homicida a doar cestas
básicas ou um estuprador a prestar serviços à comunidade. No caso de Bolsonaro,
desafia-se claramente o Judiciário. Esse projeto representa afronta ao
princípio constitucional da separação de Poderes.
*Roberto Livianu, procurador de Justiça do
Ministério Público de São Paulo, é doutor em Direito Penal pela USP,
idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e integrante da
Academia Paulista de Letras Jurídicas
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