Valor Econômico
As novas elites tecnológicas não têm nada em comum com os tecnocratas de Davos; seu modo de vida não se baseia no gerenciamento competente do que existe, mas sim no desejo de fazer bagunça
Em livrarias em Paris, neste verão, logo na
entrada aparece em destaque um pequeno livro que tem a ambição de ajudar a
compreender o caos no qual nos encontramos hoje. De autoria do conselheiro
político ítalo-suíço Giuliano da Empoli, “A Hora dos Predadores” examina
contornos de uma nova ordem mundial, uma realidade que o autor considera “fruto
apodrecido” de aliança de gigantes da tecnologia e dirigentes populistas, onde
o uso da força bruta se torna o modo de funcionamento.
Antigo assessor do ex-primeiro-ministro
italiano Matteo Renzi (centro-esquerda) e acompanhante frequente do presidente
francês Emmanuel Macron em viagens ao exterior, esse professor da Science Po,
famosa universidade parisiense, faz curtos e inquietantes perfis de membros da
chamada “internacional reacionária”, indo de Donald Trump a Nayib Bukele,
presidente de El Salvador, e o príncipe saudita Mohammed bin Salman, além de
patrões de grandes companhias tecnológicas como Elon Musk e Sam Altman (da
OpenAI).
A constatação é de que o mundo muda velozmente marcado por avanços da inteligência artificial, ataques reiterados contra a democracia, multiplicação de conflitos militares. Como ele nota em diferentes entrevistas, há momentos em que a realidade tem mais imaginação que a ficção.
Donaldo Trump recebe destaque nessa análise.
Para Da Empoli, o atual presidente americano lidera um cortejo colorido de
autocratas descomplexados, de conquistadores da tecnologia, de reacionários e
de conspiradores impacientes por confrontos. Considera que uma era de violência
sem limites está se abrindo diante de nós e, como na época de Leonardo da
Vinci, os defensores da liberdade parecem singularmente mal preparados para
reagir.
Se em meados da década de 2010 os brexiters
(defensores da saída do Reino Unido da União Europeia), Trump e Bolsonaro
pareciam ser um grupo de outsiders, desafiando a ordem estabelecida e adotando
uma estratégia de caos, como fazem insurgentes em guerra com uma potência
superior, hoje a situação é oposta: o caos digital, por exemplo, não é mais a
arma dos rebeldes, mas a marca registrada dos poderes dominantes.
Observa o autor que, se o velho mundo
pressupunha salvaguardas - respeito à independência de certas instituições,
direitos humanos e direitos das minorias, atenção às repercussões
internacionais - elas não têm mais o menor valor na era dos predadores.
No novo mundo, todos os processos atuais
serão levados às suas consequências extremas, nenhum deles contido ou governado
de alguma forma. Os predadores têm uma vantagem decisiva, porque estão
acostumados a evoluir em um mundo sem limites.
Para o autor, Trump é assim uma forma de vida
extraordinariamente bem adaptada aos dias atuais. Uma de suas características,
da qual seus assessores reclamam em voz baixa quando ele acha que deveriam
estar alertando em alto e bom som, é que o presidente da maior potência do
mundo nunca lê. Isso representa um desafio considerável para qualquer pessoa
que deseje transmitir a Trump o mínimo de conhecimento estruturado.
Para Giuliano da Empoli, na verdade isso não
tem importância, porque na hora dos predadores o conhecimento é um dos piores
inimigos. O que conta acima de tudo é a ação em ambiente caótico que exige
decisões ousadas, que cativem a atenção do público e, ao mesmo tempo,
influenciem os oponentes.
Nessa era de predadores, constata que não são
mais os líderes da antiga periferia que estão tentando se assemelhar aos
líderes ocidentais, mas sim estes que estão adotando traços alógenos. Se o fato
de Trump governar os EUA com um círculo de familiares e associados desconcerta
os políticos europeus, o mesmo não acontece com os autocratas, que acham
perfeitamente natural recorrer a um parente ou parceiro de negócios do
presidente para obter tratamento preferencial.
A única coisa que conta é o resultado. E
lembra uma frase do presidente argentino Javier Milei, à vontade no novo
cenário global, segundo a qual a diferença entre um louco e um gênio é o
sucesso.
Os predadores, escreve ele, se concentram na
forma, não na substância. Prometem resolver os problemas reais das pessoas,
como crime, custo de vida, imigração. E o que dizem seus oponentes, os
liberais, os progressistas, os bons democratas? Regras, democracia em risco,
proteção de minorias...
Na era dos predadores, o equilíbrio explodiu.
As novas elites tecnológicas, os Musks e os Zuckerbergs, não têm nada em comum
com os tecnocratas de Davos. Seu modo de vida não se baseia no gerenciamento
competente do que existe, mas sim no desejo de “foutre le bordel”, fazer
bagunça. A ordem, a prudência e o respeito às regras são anátemas para aqueles
que fizeram sua fama agindo rapidamente e destruindo as coisas, conforme o lema
do Facebook.
Para Giuliano da Empoli, essa situação era
evitável. Acha que, se chegamos a esse ponto, é também por uma forma de
submissão cultural de velhas elites políticas face à máquina da tecnologia. E o
que temos é o caos digital, ou “ritual de degradação”, ausência de regras que
está se tornando hegemônica.
A obstinação com a qual predadores políticos
à la Trump e predadores da tecnologia como Musk e Zeckerberg avançam sobre a
Europa e outros países, sua regulação e instituições, deixa claro como eles
percebem tudo isso como um obstáculo.
A sanção anunciada por Trump contra o Brasil,
na semana passada, é uma pequena ilustração do que procura mostrar Da Empoli.
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